sexta-feira, dezembro 07, 2007
PRIMEIRA REUNIÃO
Imagem: Study of a Young Man Beside the Sea, ca.1850 (Musée du Louvre, Paris, France), do pintor francês neo-clássico, Hippolyte Flandrin (1809-1864).
POUCAS PALAVRAS E UMA DOR
Para Mauricio Melo Júnior
Luiz Alberto Machado
Eu sonhava olhando pros trilhos do arruado de lá pertinho da usina que não era sonhar enquanto espanto. Era ganido da vida, dos lêmures açucareiros e dos vultos insones que o una bramia atrás da prefeitura.
(eu não era Armstrong, mas vivia na lua ou no jazz catando furo no meio do mundo).
A gente cantava as vidraças gratuitas do pequeno comércio no meio da feira com jeans e bugingangas e balangandãs. Incerteza no bolso, mas candomblés cabarés e tino misturando besouros e motos na Praça Maurity, onde ontem teve uma briga de galo sob um sol enorme. E isso custa a sair da moldura da memória.
Bora gente, bora, bora, vamolá.
Bora gente, bora, nosso mundo conquistar.
A conquista era utópica não cabia no verão. Estendia-se vida adentro, tinha ânimo de agüentar quantas peripécias doidas a gente inventasse permitir depois de um arco-íris ou depois, bem depois, infernalém. Além.
Nessa alma toda dentro desse bailar de vida verde inventei canções, cartões postais do universo mágico dos meus rios e seus bicheiros, calungas e meretrizes, hierofantes, farrapos, feirantes, rabecas e pastoris, num oxigênio pálido e clandestino, num resplandecer de vultos viciados de vida e que as correntes geram e geram em vida breve pelos currais, urgências, penitenciárias, nosocômios, cartórios e cemitérios para logo incandescerem e assim pertencerem aos episódios do éter.
Ainda escuto o barulho do trovão. É provável que mais tarde ouça a efervescência radioativa de luniks, sputinicks, progress life, napalms, tudo se rasgando apocalipse, gênesis e a emancipação do homem e seus subterrâneos desvarios cravados nos mandamentos da tábua da sorte, sei lá que mais etc e tal. E ouvindo o barulho do trovão, só – a solidão é o hábito da noite – no meu mal secreto, “capaz de ouvir e entender estrelas”, sonhei caindo nos olhos de Clarice na “via crucis da alma”, nos “laços de família”. Foi aí que perguntou-me: “Onde estiveste esta noite?”. E eu ouvi Clarice no meu silêncio inatingível. E ela me contou a “paixão segundo gh”, “a hora da estrela” na nossa “felicidade clandestina”, no centro de nossa “cidade sitiada”.
E eu vivo voluntariamente nesta terra em que o sol jamais reconhecerá o acaso.
E o meu espólio é ter eternamente dores para ter palavras.
Ter palavras para acalentar as dores.
Nas palavras eternamente a dor da palavra.
Na fúria dos anos. Na minha paixão whitemeana.
A noite desabou. O dia desabou. Acendi a vela e o vento baniu a luz. E Lennon dizia “Imagine”. E eu nem imaginava nada porque havia uma bomba no telhado suspendendo os meus sentidos que estavam entre os gatos na noite. E me diziam que o sonho havia acabado que Lennon desiludido o sonho acabado e Lennon e o sonho e nem se falava mais na Era de Aquário nem de paz e amor porque havia deflagrado uma guerra na América Central e a paz estava comprometida, o amor comprometido e o céu ainda estava quase azul. E havia uma provisão de sonhos na tiracolo. Mas não é de sonhos que precisamos, é de punhos! Ponto final.
© Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. In: Primeira Reunião. Recife: Bagaço, 1992.
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