segunda-feira, agosto 18, 2008

POETAS DE SÃO PAULO



GLAUCO MATTOSO

SONETO 951 – NATAL

Nasci glaucomatoso, não poeta.
Poeta me tornei pela revolta
Que contra o mundo a língua suja solta
E a vida como báratro interpreta.
Bastardo como bardo, minha meta
Jamais foi ao guru servir de escolta
Nem crer que do Messias venha a volta,
Mas sim invectivar tudo o que veta.
Compenso o que no abuso se me impôs
(pedal humilhação) com meu fetiche
lambendo, por debaixo, os pés do algoz.
Mas não compenso, nem que o gozo esguiche,
Masoca, esta cegueira, e meus pornôs
Poemas de Bocage são pastiche.

SONETO 244 – PRODIGIOSO

Quem sabe o maior mérito de Homero
Foi ter feito o que fez sem ter visão.
Se Borges, Aderaldo ou Lampião
Fizeram, vou fazer também, espero.
Zarolho ou cego, não quer ser mero
Passivo espectador da ocasião.
Verei o que videntes não verão;
Se sábios não souberam, eu espero.
Beethoven era surdo, e foi maior.
O grande escultor nosso era sem mãos.
Perder não é dos males o menor.
Abaixo estou de todos meus irmão.
Que o mais pecaminoso sou pior.
Meu trunfo é só não ter dois olhos sãos.

SONETO 541 – CONTRARIADO

Por ser o cedo tarde e o tarde cedo;
Por ser tarde a manhã e a noite dia;
Por ser gostosa a dor, triste a alegria;
Por serem ódio amor, coragem medo;
Se o plagio é mais invento que arremedo;
Se exprime mais virtude o que vicia;
Se nada vale tudo que valia;
Se todos já conhecem o segredo;
Por ser duplipensar barroco a língua;
Por menos ter aquele que mais quer;
Se a falta excede e tanto abunda a mingua;
Por nunca estar o nexo onde estiver,
Desdigo o que falei e a vida xingo-a
De morte, se a cegueira é luz qualquer.

SONETO 234 – CONFESSIONAL

Amar, amei. Não sei se fui amado,
Pois declarei amor a quem odiara
E a quem amei jamais mostrei a cara,
De medo de me ver posto de lado.
Ainda odeio quem me tem odiado:
Devolvo agora aquilo que declara.
Mas quem amei não volta, e a dor não sara.
Não sobra nem a crença no passado.
Palavra voa, escrito permanece,
Garante o adágio vindo do latim.
Escrito é que nem ódio, só envelhece.
Se serve de consolo, seja assim:
Amor nunca se esquece, é que nem prece.
Tomara, pois, que alguém reze por mim...

SONETO 500 – VICIOSO

Poema lembra amor, que lembra carta
Que lembra longe, e longe lembra mar,
Que lembra sal, e sal lembra dosar,
Que lembra mão, e mão alguém que parta.
Partir lembra fatia e mesa farta;
Fartura lembra sobre, e sobra dar;
Dar lembra Deus, e Deus lembra adiar
Que lembra carnaval, que lembra quarta.
A quarta lembra tres, que lembra fé;
Fé lembra renascer, que lembra gema,
A gema lembra bolo, e este café.
Café lembra Brasil, que lembra um lema:
Progresso lembra andar, que lembra pé,
E pé recorda alguém que faz poema.

SONETO 955 – FORMAL

Discute-se qual gênero é mais puro
- haicai, soneto, glosa, oitava ou trova –
e cada defensor mostra uma prova
que num o verso é solto e noutro, duro.
Uns acham que este aqui tem mais apuro,
Enquanto aquele traz algo que inova;
Alguns mais radicais chamam de cova
Prisão, túnel do tempo e quarto escuro.
Nem oito, nem oitenta: a poesia
É boa ou má conforme o testemunho
Que dá de seu autor enquanto a cria.
Se sai-me redondinha, é que meu punho
Encaixa em cada silaba outro dia
Vivido, sem minuta nem rascunho.

SONETO 535 – ACALENTADO

No dia em que eu for rico, não terei
Mansões, carrões, piscina, apê na Europa:
Com brilho e auê meu tipo não se dopa
Nem paga aula de assunto que não sei.
Na mesa, porem, quero, como um rei,
Jantar com antessopa e sobressopa:
Toalha pode ser até de estopa,
Mas sopa no meu prato será lei.
Não falo da sopinha trivial
Que todo mundo toma no jantar
Tão rala que parece chá com sal:
Refiro-me às que lembro de tomar
No tempo em que a colher, descomunal,
No prato mergulhava, feito um mar...

SONETO 660 – DESFORRADO

Bem feito! Quem mandou me ler? Agora
Vai ter que me engolir com casaca e tudo!
E mesmo quando, em parte, me desnudo,
Quem prova sente nojo e cospe fora.
“Bem feito!” (é o que se diz ao cego) “Chora!”
eu choro, mas em vez dum pranto mudo
converto o desabafo em verso agudo
tão grave quanto um frade que não cora.
Sem papas, meus buracos escancaro
E os olhos dos leitores esbugalho
Ao verem que a derrota vendo caro.
E a quem acha bulhufas o que valho
Das tralhas mais baratas sou avaro
De modo a indecifrar-lhe meu trabalho.

SONETO 100 – PROIBIDO

Tabus são mui comuns em todo mundo.
Na China não se pode ter irmão.
Em Cuba, ser de esquerda é obrigação
E, nos States, nada está em segundo.
Não deve um escritor ser tão profundo
A ponto de ocultar toda intenção;
Nem é-lhe permitido o palavrão,
A fim de não ferir o pudibundo.
Em suma, se correr o bicho pega,
Se fica o bicho come, não tem jeito.
Mas cego que é poeta não se entrega.
Se não existe fama sem proveito,
Já basta o que a cegueira me sonega!
Sou chulo e reconheço meu defeito!

SONETO 427 – PREGUICISTA

Não basta a ditadura da injustiça
E vem a ditadura do magriça.
Caímos no regime do exercício,
Egressos do regime militar.
Censura a poltrona como vicio!
Dever, serão, cobrança, obrigação.
Mal temos um tempinho de lazer,
E os nazis o nariz querem meter
Impondo-nos o esporte e a malhação.
O tempo é precioso. Desperdice-o!
Senão a gente ainda vai parar
Num eito, num presídio ou num hospício.
Resista! Durma! Assuma esta premissa:
A luta tem um símbolo: PREGUIÇA!

SONETO 752 – DA NOVA INQUISIÇÃO

O papa e Bush, unidos, cagam regra
Banindo o casamento gay da lista
Das leis normais: agora esta conquista
É um risco e a sociedade desintegra.
De novo a cantilena: o gay desregra
A vida, e quem num vicio tal persista
Só pode ser doente ou anarquista,
Um vândalo que a Lúcifer alegra.
São eles, governantes, não os gays
Os grandes responsáveis pelo mal,
Reais e verdadeiros seis-seis-seis!
Católicos de merda e o capital
Levaram todo o mundo ao ódio aos reis,
Mas sempre o amor de iguais quase é casal.

SONETO 192 – FLATULENTO

O peido, mais que o arroto, inspira o riso
Gostoso, desbragado, gargalhado,
Da parte de quem pode ter peidado,
Enquanto os outros fazem mau juízo.
Com base no meu caso é que analiso,
Pois, mesmo estando a sós, enclausurado,
Gargalho após os gases ter soltado
E aspiro meu fedor, feito um Narciso.
Me ponho a imaginar a reação
De alguém afeito a normas de etiqueta
Colhido de surpresa ante o rojão...
Meu sonho era peidar fumaça preta
Na mesa dum banquete, para então
Deixar que a gargalhada me acometa.

SONETO 811 – DE TODAS AS VONTADES

Sentada no penico, a garotinha
Se esforça e faz careta. Escorre o ranho
Do lindo narizinho. E que tamanho
E odor tem o cocô que ela retinha!
“Coragem, meu amor!”, diz-lhe a madrinha,
“Cepois ce vai tomar aquele banho!”
“Só isso?” ela sorri, “Que mais eu ganho?”
“Um beijo” “Ah, quero um quarto e uma cozinha!”
Brinquedos tem de monte, mas não faz
Cocô todos os dias, coitada.
Apenas faz barulho e solta gás.
E quando no penico não tem nada,
A infanta, em vez do beijo dum rapaz,
Suplica um cocozão à sua fada!

SONETO 307 – PUNHETEIRO

Se “circle jerk” é roda de punheta,
Já fica desde logo demonstrado:
Brinquedo de guri não é quadrado.
A mente dum adulto é que é careta.
Pensando nos peitinhos, na buceta,
Mas vendo os coleguinhas lado a lado,
Libido de menino é complicado:
Bedelho mete em tudo, esse xereta!
Pentelho inda não tem, e já maneja
Com toda a habilidade seu cacete,
Expondo a cabecinha de cereja.
Lembrar do pirulito e do sorvete
É quase que automático. Fraqueja
Um deles, e na turma faz boquete.

SONETO 139 – OROERÓTICO (OU OROTEÓRICO)

Segundo especialistas, a chupeta
Depende da atitude do chupado:
Se o pau recebe tudo, acomodado,
Ou fode a boca feito uma boceta.
Pratique irrumação o pau que meta
E foda a boca até ter esporrado;
Pratica felação se for mamamdo
E a boca executar uma punheta.
Em ambos casos, mesma conclusão,
O esperma ejaculado na garganta
Destino certo tem: deglutição.
Segunda conclusão: de nada adianta
Negar que a boca sofra humilhação,
Pois, só de pensar nisso, o pau levanta.

GLOSA

Muita merda já fedeu
Glosada de mote em mote,
Mas não há glosa que esgote
O peido que a nega deu.
Outro cheiro é mote meu:
Chulé de macho, um tabu
Que afugenta até urubu!
Chupo o pé, cresce-lhe a pica
E, de tão grossa que fica,
Quase não cabe no cu.

SONETO 174 – BESTIALÓGICO

Senhoras e senhores, caros caras:
Causar-vo-ia mal meu privilégio
De protagonizar o espicilégio
Por entre poesias tão preclaras?
Não, colendos colegas tabajaras!
Fui prócer proclamado no colégio!
Insólito não seja o sortilégio
De haver estro sublime em minhas taras!
Só quem detem desdém maledicente
Verá nos meus poemas despautério!
Os outros me honrarão, logicamente!
Meu único e supremo desidério,
Inconstitucionalisssimamente,
Indubitavelmente, é não ser sério!

GLAUCO MATTOSO – O poeta, ensaísta, ficcionista e articulista paulista, Glauco Mattoso foi registrado civilmente Pedro José Ferreira da Silva, em 1951, formado em biblioteconomia e letras vernáculas. Mantem desde os anos 70 um perfil contracultural, embora prefira ser pos-maldito. Praticou experimentalmente diversos gêneros poéticos: poesia visual, haicai, limerick, glosa, soneto, também se dedicando à poesia de cordel. Tem vários livros publicados e inéditos. Entre suas obras está Poesia Digesta, publicado pela Landy Editora, em 2004. Está cego desde a década de 90.

FONTE:
MATTOSO, Glauco. Poesia digesta (1974-2004). São Paulo: Landy, 2004.

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