
LÉA MADUREIRA
REFÚGIOS
Ouvi tocar tambores em cena
Asa na mão veste branca
Regiamente descalça
Ouvi tocar tambores
Na incompletude de quintais
Largos refúgios
A boca não fala o que o corpo
Sorve na fome do tempo
Resistência estóica
Sob o silêncio
- da veste branca aos tambores –
Ouvi o discreto pulsar
Da permanência.
IMAGINÁRIO
Espaço e ponto e linha
no canto do muro
roucas cigarras
nas folhas e galhos
Inertes ao chão
Entre teares e teias
sementes e gravetos
matéria dos passos
em teto de vidro
Pássaros e pipas
alinham poemas
na ponta dos bicos
Crisálidas escondidas na seda.
INVENTÁRIO
Escorre a memória
Entre assembléias – o pátio
Livre cátedra transpira idéias embates
Aos cavalos chão de bilhas
Aos heróis cangalha e exílio
Desafios de pele
Eriçando atalhos
Descoberta de muito ou quase amor
A musse de chocolate
Indaga o desejo da boca
Café pingado aos recém-libertários
Passam velhos companheiros
E também passarinheiros
Veneno de algoz no mármore
Do futuro seqüestrado
Casamentos batizados
Nudez em travessias.
HERANÇA
Sob a sola dos pés, varando a rua,
Sombrio apito a lamentar corria
Do trem de Tiradentes, cheia de lua
d. João, El Rey, léguas ao pó media.
Arrasta correntes, o antigo estorvo
Ladeira abaixo, ausente a simetria
Modelo imposto pesa e tripudia.
A morte cantando em linguagem dócil,
Das ruas, salões – estranho contraste –
Emerge em duelo, ironia e ócio.
Como fechar coloniais janelas
Se ao vil aplauso cedo as condenaste?
Reais espinhos... tão cruéis seqüelas!
CANTO DI TIÉ
O tié-sangue o canto derrama
Nas mãos vazias de terra
Galhos sem tronco
Asas ceifadas
Ao grito de resistência
Raiz cerzida n´alma do tempo
Divisor d´agua no estio
Segando arestas dos excluídos
Crestada agonia no peito do tié.
DESPOVOADO
Casario
Distante miragem entregue à sede
O descaso – moléstia do tempo –
Devasta a fala
De pedra são os ombros
Os ossos a sombra dos passos
Na encruzilhada dos pés
- diáspora –
Perdida faina.
PONTO ZERO
Serapião carreou-se pela charneca
Noite adentrou.... luar luou
Nunca se viu tanta estrela assim no chão!
Um tiro a queda o rastro
Lamparina lambeu em queimada
Serapião emergiu no breu da noite, encantado.
JOGOS
Parceiros desfeitos...
Descalças memórias
Ao pé da cama.
Espelhos, perfume
Escova espalhados e a colcha no chão.
Chinelos, aos cantos
- os quatro –
Do quarto
Crianças tropeçam
Em jogos quebrados.
LÉA MADUREIRA - é professora de história, poeta, membro da Comissão Editorial do Jornal Poesia Viva e da Uapê Revista de Cultura. O livro de Léa Madureira, Por não haver navegado, reúne os quatro elementos básicos que vão constituir o fluxo da própria realidade na sua poesia. Eles revelam o modo de ser e de criar da poeta. Da Água vêm as origens, o mergulho na infância; o Ar leva a existência aos processos de mudança; o Fogo vem incensar os ideais com o vigor da sua erupção e a Terra dá a medida do mundo, semeando, penetrando, enraizando. Para cada um desses elementos o leitor vai encontrar um espaço para exercitar sua própria criação, como uma degustação dos sentidos experimentados a cada momento do livro. Uma página em branco que, ao ser tocada, mexida, riscada vai configurar o nascimento de um novo livro, que passa a existir a partir do encontro do leitor fruidor com a autora que o convida a navegar.
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