UM VERSO NÃO BROTA À TOA ou O POETA
ENTRE A ESPERA E A DEMORA, O ESTALO!
Luiz Alberto Machado
Olá, lente, minha saudação!
Achegue-se mais e vamos prosear sobre a poetada que
proporcionou este nosso encontro.
É muito bom poder dividir a fruição da leitura deste
livro: você tem nas mãos uma singular obra, razão pela qual estou aqui para
dizer, tão somente, o que ela representou para mim por todo momento em que tive
a oportunidade de lê-la.
Indispensável dizer que não tenho mais idade nem nunca
tive a satisfação da cabotina enrolação no concernente às amizades que tive e
privei ou desperdicei, sobretudo no quesito dos arroubos elogiosos, tendo em
vista que sempre disse na lata o que penso ou desgosto, além de ser vacinado
quanto aos achegamentos hipócritas mais simpáticos, o que me faz viver muito
bem com a minha solidão. Desses expedientes não faço uso, nem nunca fiz. Disse
e está dito, preveni.
Simplesmente saúdo a sua chegada e dou as boas-vindas a
você que resolveu passar as vistas no que tenho a dizer, antecipadamente grato.
Não será nada demais, só impressões pelo que desfrutei
com a experiência da leitura.
UMA: O TEMPO DA GENTE & O DE TODAS AS COISAS
Nem arte nem sabedoria é algo acessível, se não há aprendizado.
Demócrito
Como sou metido a beletrista e não passo dum
escrevinhador cheio das pregas, então poderia aqui me amostrar tratando acerca
da experiência de vida do Bach, por exemplo; ou de Beethoven, ou mesmo da
explosão criativa de Stravinski, Schoemberg ou Villa-Lobos.
Poderia trazer relatos das paixões de Poe, das
extravagâncias e rebuscamentos estéticos de Baudelaire, ou das ousadias de
Ginsberg, Larkin ou Montale.
Ou da solidão de Toulouse-Lautrec, da grandeza de
Modigliani ou da dualidade de Escher.
Talvez até das cenas de Shakespeare, da épica de Brecht,
ou das sacadas de Plínio Marcos ou das depressões geniais de Sarah Kane.
Poderia, mas não. Sem empáfia, todo esse arrazoado é só
para dizer que todos os citados viveram e poetaram ao seu modo e no seu tempo.
Aprenderam com o seu momento e se superaram.
Evidencia-se, então, a necessária consideração sobre o
tempo da Natureza: a semente germina e, depois de determinado tempo, brota por
meio de ramos, folhas e flores para frutificar.
Assim, como tudo na vida, com a gente: o espermatozoide e
o óvulo, a gestação, o parto e o processo de desenvolvimento até a velhice.
Tudo tem seu tempo.
O que nos distingue é a possibilidade da arte e levo tão
a sério o que diz Ingrid Koudela: “A arte
é um meio para liberdade, o processo de liberação da mente humana”.
Condução similar a de Roger Garaudy ao escrever Apelo aos vivos e reiterar no seu Ainda é tempo de viver: “Não há em tudo isso qualquer nostalgia do
passado, qualquer sonho de retorno ao que passou ou de uma idade de ouro, mas,
ao contrário, é um avanço, baseado na tomada de consciência de tudo aquilo que,
em nossa época, representa a promessa de uma nova mutação do homem”.
Quer dizer, então: aprender leva tempo; depois, a
colheita dos frutos.
Graças! Uso mais aquele Natal de Vinicius: “Para isso fomos feitos”.
Admmauro Gommes, aquele que conheci adolescente num
ambiente escolar, folheando livros da geração Beat, e que na ocasião se mostrava um inquieto e promissor
rabiscador de reiterados versos, um dedicado jovem na aprendizagem da arte
poética, hoje se expressa como um dos principais expoentes da poesia destes
tempos.
Ao reencontrá-lo depois de décadas passadas, lá estava eu
diante de um professor que já assumiu diversas secretarias de educação,
presidiu e dirigiu instituições, afora poeta e compositor de letras musicais.
Tem a seu favor e na minha alta conta o magnífico trabalho de extensão
realizado na Famasul, em Palmares, reunindo um grupo de pesquisa e debates que
redundou na publicação de diversas antologias sobre Poesia Absoluta, com a
participação tanto do mentor, como dos alunos do curso de Letras da faculdade. Esta
sua atividade prova que é um sujeito que partilha com todos tudo aquilo que
aprendeu. Aplausos de pé pela iniciativa.
Em suma: AG possui um currículo invejável e, como tal,
interminável, não bastando dizer que é uma das poucas pessoas que eu conheço
que está entre as mais generosas, quanto entre as mais habilidosas para
enfrentamento e resolução de quaisquer desafios. Pronto. Se não pintei o quadro
completo, pelo menos aqui terá uma breve noção a respeito desta pessoa amiga.
O melhor é que me surpreendi ao ler alguns de seus
livros, não todos porque já passa da casa dos trinta títulos publicados – mas
ainda os lerei, todos. E entre os que li tive o prazer de detectar a trajetória
do seu caminho, suas tentativas e reconstruções, suas passadas e recuos, sua
personalidade se firmando com o aprendizado das tantas lições.
Dos seus cometimentos às saudáveis expressões de suas
múltiplas faces que se imprimem numa única efígie: a de quem se projetou para
fazer a sua própria caminhada. E nela pontuando as influências marcantes, como
a da poesia de Fernando Pessoa – inclusive uma de suas obras homenageando o
grande poeta-filósofo lusitano -, e a não menos impactante Poesia Absoluta de
Vital Corrêa de Araújo – de quem o próprio AG reuniu, selecionou, organizou e
publicou diversos livros de e sobre esta poesia inovadora -, afora tantas
outras que rechearam o caldeirão no processo de formação de sua própria voz, da
sua própria dicção, do seu próprio timbre.
Afora isso, como já disse, publicou algumas dezenas de
livros de poesias, sem contar estudos de poética e linguística, todos
carimbados com a sua marca desbravadora e competente.
Agora digo: o poeta que vi adolescer danado pela vontade
de dizer alguma coisa com seus escritos - cometia os primeiros versos juvenis
como quem solto na buraqueira, jeito que fosse de não mais parar sabe-se lá
onde -, na evolução do seu processo formativo de dias e noites insones, o
resultado: chegou a um estágio de maturidade própria daqueles que estão prontos
para a dádiva do reconhecimento público e alcance das perspectivas para além do
aqui e agora, indubitavelmente coisa de alcançar a posteridade.
DUAS: DESEMBRULHANDO O PRESENTE, DEMOROU NADA!
“Adote
o ritmo da natureza. O segredo dela é a paciência”
Ralph Waldo Emerson
Eis o aviso de Heráclito: “O tempo é uma criança que brinca, movendo as pedras do jogo para lá e
para cá, governo de criança”. É ele que diz que o tempo é polemos, ou melhor, competição e luta –
mais precisamente, o filósofo assinala que se trata do pai de todas as coisas,
o rei de tudo.
Quase a mesma coisa daquele Tempo da canção do Caetano Veloso.
Sim, enquanto outros se arrastam entre relógios e
calendários, tudo passa e ninguém se dá conta direito. Vai ver e já era. Um
estalo e o futuro foi pro passado. Coisas da vida.
Não seria dispensável refletir sobre o que disse Hermann
Hesse: “Na arte o tempo não tem nenhum
papel a desempenhar. Na arte não existe nenhum tempo perdido, ainda, que só ao
final de longo esforço se alcance o máximo em intensidade e perfeição. O ofício
do poeta é tão sagrado quanto cheio de renúncias e não permite um desvio do
trágico para o social”. Nada mais apropriado, pelo menos para mim.
Pois bem. AG em seu magnífico poema Demorou muito diz que foi preciso 40 anos para a descoberta. Ah, um
felizardo, diga-se de passagem, porque a minha epifania catártica só se deu lá
pra depois dos meus 50, quando saí do tempo dos homens e surgiu o Nitolino que
era outra vez, eu mesmo, aquele menino travesso da beira do rio que fui - muito
embora eu as tivesse por décadas desde os 10 anos de idade. É quando a gente se
despe de carapuças, carapaças, amarras, camisas-de-força, grilhões.
Antes disso eu vivia como acertou Tolstoi: “O tempo e a paciência são dois eternos
beligerantes”. Era sobrecarregado de indagações intrínsecas à natureza
humana, em busca de mim mesmo e com as milhares maneiras de errar o próprio
caminho, entre tumultos e agonias – nem sabia que era a formação do conteúdo da
experiência.
Foi preciso saber de Flaubert: “Talento é paciência sem fim”. Ah, a segunda tenho de sobra; o
primeiro, buscando cada vez mais longe.
Também a lição da Gaia
Ciência de Nietzsche: “É preciso
tempo para o relâmpago e o raio, é preciso tempo para a luz dos astros, é
preciso tempo para as ações, mesmo quando foram efetuadas, serem vistas e
entendidas”. Sim, sempre tive a sensação de que havia perdido muito tempo,
até demais: por que não antes, ora, bati cabeça, errâncias indissolúveis,
desvios tantos de perder o rumo e o atalho.
Foi Exupéry quem trouxe alento: “Foi o tempo que perdeste com a rosa que fez tua rosa tão importante”.
Mesmo assim parecia que nada aprendia.
Até Carlyle: “O
infortúnio do homem tem origem na sua grandeza. Porque há algo de infinito nele
e ele não pode ser bem-sucedido se enterrando completamente no infinito”.
Ôpa! Era a descoberta de saber daquilo que se pensa ser maior do que
propriamente somos e isso é para lá de revelador.
Logo esqueci fracassos, impotências, frustrações, porque
só queria me superar, além de mim e ouvir o sussurro sutil do meu próprio
coração. E me extraviar: porque não temi ficar só, a solidão é íntima da
descoberta.
Não precisava mais saber o amanhã, mas seria bom que não
morresse antes de descobrir algo a respeito. Nada. Nietzsche nas suas Considerações extemporâneas me avisava:
“O saber que é absorvido em demasia e sem
fome, e até contra a necessidade, já não atua mais como motivo transformador”.
Aprendi a dosar, ora.
Assim foi, mas não é de mim que tenho que falar, é de AG
e ele com o seu poema Demorou muito
deu uma guinada: como se o poema tivesse sido a alavanca para um enorme salto,
um reengenhariamento para lá de deveras. Pois teve a tranquilidade de se dar
conta e, depois, se desfazer das pedras no calcanhar – sobretudo as humanas - e
sair pelos degraus cinza de mármore ladeira abaixo, como se fosse Rimbaud
descendo ao inferno, aos empurrões, às pancadas e o mundo escondendo os perigos
inúteis dos monstros invisíveis que ele teve de desvelar nas correntes do
tronco da agonia.
Uso dos seus próprios versos para dizer que ele teve que
se deixar exposto às queimaduras das muitas fagulhas das dores do nada e juntar
os sacos de aço com todos os tremores do mundo para arrastá-los de onde o medo
das máscaras atrás da janela com suas cortinas e gravuras costumavam
surpreender no desespero da espera e não eram nada vezes nada.
Teve de se repetir para perseverar e quem não injusto
consigo e os demais, quão estreitas, íngremes, escorregadias são as travessias
com suas pedras falsas, a ponto de ter que saber que quem fecha os olhos perde
o que tem que aprender e ao abri-los nada mais restará, tudo passou.
Teve que se saber Ícaro e Fênix ao mesmo tempo, como se
flagrasse o horizonte de expectativas da hermenêutica de Gadamer, ou como diria
Paul Ricoeur: naquela do dá a pensar. Se não era a conquista, pelo menos a
maravilha! Chegou a hora e pronto. E a impiedosa sinceridade de Demorou muito – a revelação, pepitas de
vasta mina poética à leveza do verso, do ritmo, e AG depondo à caveira como se
descartasse doutrinas para a legitimação do exercício de suas atividades: a
descobrir as secretas faces da natureza, as coisas escondidas. E nele, poeta
epifânico, a leitura da cor, do som, do sabor da linguagem que revela o
inefável e constrói a própria existência e a aprendizagem da convivência.
AG neste poema alcançou a liberdade, sim aquela mesma
mencionada por Krishnamurti: “Liberdade é
um estado e uma condição da mente”. E acrescenta o avatar hindu: “Precisamos estar sós, não, contudo, no
sentido de isolamento do monge. Estar verdadeiramente só significa liberdade.
Não é a solidão da autopiedade nem do isolamento. É o maravilhoso ver,
claramente, que estamos sós”. E AG fez da sua introspecção solitária a
viagem poética mais que siderada para a descoberta valiosa: a poesia pulsava
dentro de si.
UM POETA EM TEMPO INTEGRAL: ESCREVO POR NECESSIDADE DE EXPRESSÃO
O real não está na saída, nem
na chegada; ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.
Guimarães Rosa
Ao ler este livro de AG tive a mesma sensação que teve
Kafka ao percorrer a obra de Strindberg: “Sinto-me
melhor depois de lê-lo... Sinto-me seguro e tenho diante de mim uma grande
perspectiva”. Ou como Gandhi ao estudar Thoreau: “Li com muito prazer e retirando dele muitos benefícios”. Isso porque, em síntese, o
transcendentalista estadunidense questionava:
“Se não sou eu mesmo, quem o será por
mim?”
Também a mesma emoção que tive ao ouvir pela primeira vez
Going for the one, do Yes –
antológico álbum da banda inglesa, cuja capa o artista Roger Dean ilustrou com
um homem nu contemplando os arranha-céus da contemporaneidade. Sim, tudo isso e
muito mais.
É que neste livro o texto é seu espelho, sua construção
libertária – seu ato de poetar no verso de uma vida inteira por mais de dois
mil e trezentos poemas cometidos! E que no meio dessa tuia de versos chega
altivo, callida junctura na diegese
emblemática de quem bebeu infinitos segurando as rédeas do destino, eternizando
minutos para quebrar a flácida casca do grito, colecionando naufrágios e
revoadas, embriagado de sonhos, vestindo-se de pássaro na lua nova para apagar
estrelas, e chegar ao ponto de conhecer as manhãs que são noites que se
cansaram da escuridão e, ainda por cima, concluir: “Escrevo porque preciso construir um mundo outro, mais ameno”.
E foi experimentando versos e sonoridades: “toda minha fortuna são pedras contadas”.
E foi pelo mundo afora sem sair de si, com as paisagens tatuadas na alma.
Ele sabe e diz: um poema nunca termina. Dele a maestria
no domínio das metáforas, no jogo entre o fictício e o verdadeiro, o dúbio e o
ambíguo.
Quem sabe onde? Diz ele: só precisamos de brisa e não
mais pensar em nada. E soube sair da alegoria da caverna platônica e passou a
poetar como O lutador de Drummond, o Catar feijão de João Cabral, quando não Traduzir-se de Gullar. Ou mais: como A alegria dos peixes de Chuang-Tzu, as
terras inventadas de Bandeira, o pensar de Sartre, ou o canto de Orfeu de
Rilke.
Sim, porque entendeu o que quis dizer Exupéry: “O principal estava invisível. O que faz
minha propriedade é aquilo que não se vê e que liga as pedras, as árvores e as
cabras e me liga a tudo”.
Não, ainda é pouco: e as 400 ideias?
Logo de relance os grandes como Nietzsche, Wilde, Cioran,
Twain, Shaw, as tiradas de Machado de Assis ou Nelson Rodrigues, Millôr, ou
aquelas do homem ao cubo ou ao quadrado do saudoso Leon Eliachar, por aí, entre
outros no meio dum time pesado. Não só se revelou apenas um simples aforista de
mão cheia, como um frasista produtor de apotegmas, anexins e chistes, lapidares
coisas do pensamento ligeiro e afiado, mas também praticante de verdadeiros
monósticos apreendidos nas funduras da fonte inesgotável do Vate VCA. E com
tantas sutilezas, do tipo daquela resposta de D. H. Lawrence a uma criança que
perguntou por que as árvores são verdes.
Ademais, AG é a comprovação do que Heidegger consigna em
sua Introdução à metafísica: “No poetar
do poeta, como no pensar do filósofo, de tal sorte se instaura um mundo, que
qualquer coisa seja uma árvore, uma montanha, uma casa, o chilrear de um
pássaro, perde toda monotonia e vulgaridade”. Ganha pela grandeza de
espírito. E me deu uma lição: “É mais
fácil explodir um poema que explicá-lo!”
Hoje sou o seu aluno que recebeu por aviso: “Cuide bem de si, mas não esqueça das outras
notas musicais”. Aprendido.
Pois bem, na condição estudantil de hybris com meus arremedilhos trelosos carregados de solecismos -
justo pela razão de nunca reclamar do espelho por refletir em mim mesmo o único
culpado de tudo -, só por isso mesmo é que me habilito destes encômios ao
autor.
Digo mais o que dele aprecio: a vida precisa de mistérios.
E mais: ninguém
conhece ninguém, nem a si mesmo. Exato!
De modos que ouso reiterar que o passado nunca passa, mas
que quem pode construir algo de novo ganha nada mais nada menos que a vida.
Como disse no primeiro parágrafo e reitero agora: você,
lente, tem em mãos aquele que poeta: “Somente
a esperança aquece os olhos do futuro”. É isso e vamos aprumar a conversa.
Melhor que tudo que eu falei, o poema:
DEMOROU MUITO
Tempo utilizado para escrever este poema: 26
minutos (21:14 - 21:40 de 17.2.13). Para corrigi-lo/alterá-lo: 50 minutos
Admmauro Gommes
Demorou muito para perceber
que as pedras que me feriam o calcanhar
eram degraus de mármore e cinza
na escada da solidez
e as nuvens e a poeira que me envolviam
sairiam logo assim que o sol nascesse.
Mas o sol demorava
e isso me afligia como um gato desconfiado
durante uma tempestade de gelo
na madrugada fria e solitária
ou invernadas outonais
que acontecem nos verões primaveris.
A cada passo, o pé se perdia
no espaço das horas e nada avançava
como única perna de um escravo
amarrada ao tronco na injustiça.
Todos são injustos em algum momento
e eu também me colocava todas as correntes
no meu tronco da agonia.
Tudo era um problema
e dores íntimas surgiam do nada
como fagulhas invisíveis queimando
o peito enfadado dilacerado
de tanta espera.
De inútil espera.
De desespera.
Mas eu não sabia que tudo isso seria
como engrossar o tronco da árvore
para resistir as tormentas
como calejar as mãos
para dar murro em pedras humanas
como reforçar as veias do pescoço
para suportar os sacos de aço
onde se colocam os temores do mundo
Ninguém me avisou que eu teria
que passar por lugares tão estreitos
e íngremes e escorregadios
e enfrentar perigos inúteis.
Tudo era para ter o aroma da felicidade
e beijos e flores e cores e afagos
mas nada de fantasmas medievais
nem internéticas assombrações.
Era para ser o filme do ano
a conquista sempre e inevitável
e o renascer da esplendorosa manhã
onde os campeões dão a volta olímpica
com a taça na mão.
Era para que o sucesso batesse à porta
todos os dias enquanto o sol dourasse os sonhos
e à noite me desse um beijo na face
e dissesse para sonhar com os anjos
e eu sonhasse com eles e acordasse
como num conto de fadas.
Mas eu não sabia dos monstros
que existem nos contos
e tem uma hora que eles aparecem
e nos assustam com um gesto pálido.
Eu não sabia que uma noite
podia durar mais que a claridade da manhã
e a tarde já é prenúncio da noite
e a noite se irmana com o que morre.
Eu não sabia que o sorriso é chave
para abrir portas internas
e sorria pouco
para não me ver além das portas.
Demorou muito saber essas coisas
que o mundo esconde e ninguém ensina
até que a vida nos dá uma tapa nas costas
alguns empurrões e pancadas
nos fazendo descer ladeira abaixo
como um pacote qualquer.
Somente quando se chega embaixo
de ponta-cabeça olhando para cima
é que se percebe o quanto se desceu
e a oportunidade de comer os degraus
e voltar ao lugar que estava é imperiosa.
Também não me disseram que à meia-noite
aparece um dragão na sombra do quarto
e pronuncia palavras noturnas
como se paredes falassem a língua do silêncio
e as janelas escondessem máscaras
e que o os dragões conhecem
onde se esconde o nosso medo.
Foi então que percebi
talvez tarde, talvez não
que é ilusão lutar contra monstros invisíveis
e a melhor maneira de combate
é permanecer de olhos bem abertos
para que as sombras não se pareçam reais
e não se fuja do nada.
O nada nada mais é que nada mesmo.
mas isso também foi muito difícil de entender.
Alguns monstros
nos deixam a pele à flor dos nervos
e são bichos depressivos que prendem o fôlego
e durante à noite fazem gravuras estranhas
por trás das cortinas
mas ninguém me avisou a hora que eles aparecem.
Apenas me ensinaram fechar os olhos
que eles desapareciam.
Sumiam do quarto mas entravam
por dentro dos meus olhos cansados
por portas invisíveis.
Percebi que de tudo que há no mundo
é preciso provar com os próprios dentes a sua consistência
e os nervos se fortalecem quando se estica a perna.
Só aprendi cuidar da garganta somente depois
que surgiu a rouquidão
e apesar dos monstros e duendes
e carrancas infernais de outro mundo
compreendi por fim que é preciso provar a vida
urgentemente
em todos os momentos
para que o prazer suplante
o ardor da pimenta
e saborear essa iguaria divina que desce
pelos lábios e nos encanta
deliciosamente
até lamber o prato de doce
quando o último pedaço se acaba.
NOTAS DO PRÓPRIO ADMMAURO GOMMES:
1 ANTES TARDE...
No ano de 2013, escrevi o poema DEMOROU MUITO, de uma
forma diferente e, diante da estranheza que eu mesmo considerei, o submeti à
análise de alguns teóricos. Esse texto representa, sobretudo, um momento
emblemático de minha produção poética. Depois de escrever mil poemas entre 1987
e 2012, recebi influência direta do amigo e do poeta Vital Corrêa de Araújo.
Logo, a forma de composição e as metáforas arrebatadoras e, às vezes,
ininteligíveis à fácil interpretação textual, têm a sombra da reorganização verbal
vitalina. Por outro lado, principalmente o poema Demorou muito reflete
indagações e mudanças de foco existencial, bem como expõe uma atualização da
visão de mundo do homem e do escritor que transpôs a primeira década do século
XXI, envolto em interrogações que só se levantam depois da quarta dezena de
anos vividos.
2
O prefácio de Nito sobre Demorou muito deveras me emocionou.
Primeiro, pela erudição que bem o caracteriza na condição de escritor e
conhecedor das Artes. Sobre isso, não precisa apresentação pois o caminho
delineado por ele para explicar esta obra demonstra quão profundas as águas ele
bebeu durante seu percurso poético artístico de vida.
De sorte que o texto de sua lavra é um capítulo à parte, e necessário
para o entendimento do livro que se apresenta. Ele consegue dar relevo e
destaque ao poema mencionado quando procura espelhá-lo com grandes autores da
literatura universal, o que me enche de desconfiança como uma galinha que bota
um ovo e se espanta com o feito. Escrever é sempre um ato de libertação de
invasão em territórios já habitados, mas sentir-se descrito é uma é uma forma
de ser perscrutado por estranhos médicos e ficamos entre o deslumbramento
suspense do diagnóstico.
Diante de sua viagem poético-filosófica apreciando a paisagem, caríssimo
Nito e meu sempre professor, por mim, a conversa já está aprumada! Depois de
quarenta anos, também lhe agradeço publicamente. Isso também demorou muito.
Ler um poeta e mergulhar em um universo particular e tentar decifrar as
incógnitas de insondáveis labirintos Luiz Alberto percebe isso quando diz.
A NOVA MODALIDADE DE RIMA DA POESIA
BRASILEIRA
Vital Corrêa de Araújo
Poeta, escritor, jornalista,
bacharel em Direito, filósolo e crítico literário.
O poeta
incrementa a polissemia da palavra. Esta é sua sina e obra. A transferência de
sentido é vital à poesia. Mestre da metáfora e doutor em aliteração, processo
este que provém de ritmo peculiar, o poema é aquele que embeleza a linguagem
poética, impossibilitando a univocidade, graças à ênfase de plurissignificação
que concede, Admmauro Gommes tem nos brindado com uma obra ensaística e poética
inavaliáveis.
Sua mais recente
façanha poética toma a forma de uma especial maratona com o verbo. Em 2013,
mergulha (com id e tudo), numa composição poética, e da imersão em tal
processo, que durou contínuos 26 minutos, levanta o poemário (épico na acepção
de algo de alta qualidade e fôlego demiúrgico) Demorou Muito. Embora não tenha demorado quase nada. O título já
traz uma dialética irônica e um contrassenso que antecipa o conteúdo do
trabalho poético.
Consumiu o poema,
de 13 estrofes e 120 versos (ou linhas – com 11 pausas), 26 minutos – 21:14h às
21:40h, do dia 17.02.2013. E “exatamente” 50 minutos para corrigi-los.
Flagra-se do
início uma especial atenção a uma estratégia poética, em que se percebe uma
solidez e firmeza de abordagem consistente em crença no sol e mescla de
estações. Escada, desgraça, pedra, sol nascente, tempestade, madrugada, outono,
inverno, verões (primeira estrofe). A segunda estrofe traz o caminho: passos,
pé, perna (em que duas é demais), tronco (da injustiça, tortura), culminando em
correntes de férrea agonia. A terça estrofe inclui dor, ilusão, dilaceramento e
desespero de espera.
Esse intróito é
vital à AG para o périplo pelas palavras, num itinerário heroico e resoluto
calejar de mãos e intumescer das veias do pescoço para suportar a carga do
mundo, os ombros da existência, os sacos de aço, os temores e a resistência
textual.
A quarta
estância, de apenas oito versos, é belíssima em sua concisão diamantífera, em
que a metáfora vegetal excele e a sensação de seiva e o floema essenciam o
líber da árvore poema. Imerge então o poeta num labirinto de esforços e naipe
(ou paiol) de dificuldades que resultam ao renascer uma esplêndida manhã
poética, numa olímpica vitória da poesia a desfilar na página de taça na mão.
Toda essa
fervilhante inquietação, essa problemática exposta sem fraturas, dizem respeito
a fases e complexidades de composição do poema. Admmauro Gommes transparece o
processo poético, prenhe de criatividade. Exerce ele uma demiurgia capaz de
ordenar o caos (e ordenhar o cosmos), usinando palavras, siderurgiando
metáforas inoxidáveis, com o aço essencial do verbo (e sem cansaço)!
Advém então o
súbito, em forma de questionamentos e interrogações prenhes de imagens da
mecânica dos dias, subtaneidade que intensifica a luta textual violenta, vital,
com tapas, empurrões, pancadas, ladeiras, decessos, quedas de ponta-cabeça,
situação que leva poeta a “comer degraus” e pronunciar palavras noturnas que
exalcem claridades de manhãs, tardes grávidas de noites e noites irmanando com
a morte, janelas escondendo máscaras e muros falando a língua do silêncio.
Brota então a
visão maior e alta de que a melhor maneira de combate é a permanência dos olhos
abertos à espera de que as sombras pereçam. E o poeta não fuja das palavras.
E límpida, e
mesmo meridiana, floresce – como rosa do asfalto, a visão de que o nada nada
mais é que nada, o que, se é difícil de entendimento, é passível de
substanciação pelo poema admmauriano.
Em suma, Demorou muito foi um poema rápido (não
ligeiro) e essencial. Uma necessidade apodítica, algo provido de intensa
purgação, capaz de forte catarse, situação a que o poeta se voltou, com
propósito irrecusável, para construir um poema que desconstrua a tradição
dialeticamente superada, enferma de anacronismos insustentáveis, e inaugure uma
poética nova, e privilegie uma nova modalidade de rima, em que a sensibilidade
lírica seja exponencial.
Demorou muito de Admmauro
Gommes é um poema inaugural de uma poética que avulta e abre a veia da poesia
brasileira a perspectivas inovadoras do nosso verbo poético. Assim, o Prof. de
Teoria Literária da FAMASUL – Zona da Mata – PE, Admmauro Gommes faz história e
se torna contemporâneo dele mesmo na poesia.
Eis um exemplar exemplo
de Poesia Absoluta. Caso em que a expressão poética independe das variáveis
categorias ou condições de espaço ou tempo (kantianas ou não). Daí, a
falibilidade do argumento de “26 minutos”, que nada exprime de relevante ao
poema.
Eis um objeto de
palavras, com começo, meio e fim, absolutamente não nessa ordem.
Eis uma situação
poética verdadeira (também porque absoluta), em que o poema termina em meio a
uma mera ou sublime perplexidade, posto que se trata de domar o caos do verso
que reflete o do mundo, em busca do cosmos verbal humano. É a ação demiúrgica
de um poeta abraçado à luta (vã ou não) com a palavra para dar sentido não a
elas, mas ao mundo.
Eis um dos poemas
capitais da neoposmodernidade poética brasileira. Um poema do nosso tempo. Não
do outro. Porém de Admmauro Gommes.
ADENDO: A marcação (os
26 minutos de construção poemática) é um falso pano de fundo temporal, uma
astuta e diversionista forma de disfarce da realidade aparente: AG, em Demorou muito (pouco), apenas produziu
um poemassíntese, num movimento calculado, porque consistiu apenas na
realização de um potencial poético acumulado ao longo de uma vida magistral de
preparação refletiva e filosófica, que redundou na atualização de uma potencialidade
expressiva rica e consequente, isto é, consciente e elevada. Mesmo ídica.
Veja mais a arte
de Admmauro Gommes aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui,
aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.