O RECIFE
DE ABRIL NA POESIA DE FREDERICO SPENCER – Era eu menino aprendendo com a
bicicleta nas areias de Boa Viagem: cabeça no vento pra todas as estripulias que
traziam a satisfação da infância, queimando nos olhos a vontade de viver. Na adolescência
fabriquei sonhos de nada e os incendiei no final de cada bebedeira trocando as
pernas na Avenida Pinheiros, na Imbiribeira. E era no Largo da Paz que eu vivia
a Espera dando murro em ponta de facas enquanto sorria o prazer com o banho
tomado do hormônio feminino de Olinda a me carregar até o Janga onde acendia a ideia
de sobreviver singrando a Rio Branco, o Cais do Apolo, a Pracinha do Diário, a
Livro 7, os bares da revolução festeira, a cachaça das criações esquecidas, os
pileques de Fernandinho e Gulu, as doidices cordelísticas do Giba Melo, a
Bagaço, os cicios poéticos de Jaci Bezerra que me fez Pirata, a solidária mão do
Juareiz Correya, os independentes do Espinhara, o Tobias Pro-Texto, os sermões filosofetílicos
do Ângelo Monteiro, os birinaites do Baixa-Renda do Paulo Caldas e demais amigos
e parceiros que compuseram minha Primeira Reunião e que vivem guardados nas
minhas lembranças mais aguçadas. Era vivendo o Recife de janeiro a janeiro pra
ter a vida além da conta e mérito.
Todas
essas lembranças emergiram do nada com a leitura de Abril Sitiado, do poeta, sociólogo
e psicopedagogo Frederico Spencer. Lembranças das boas recheadas de fracassos e
venturas, aconchegos e deserções, visagens e dissensões, entusiasmos e veleidades.
Recife que um dia foi minha realização de vida.
CARTA
AOS AMIGOS
Nasci poeta
Na pele
das palavras, teci-me
Tecido de
sonhos e imagens
Do mundo,
lancei
Minha rede
sem haver mar
Nem terra
Nas paginas
dos dias, amealhar
No fiel
o imponderável pesar.
Nasci poeta
A palavra
exata:
Vivo.
CANTIGA
AO AMOR
Não
sabia do amor
A agonia,
como se amar
Fácil fosse,
à noite só:
Imaginar-te
chegar:
Se despindo
na janela
Essa imensidão
de mar
E de silêncio,
fia a solidão
O teu
canto dentro da noite
Vago sem
ter nas mãos
Como se
amar
Fácil,
fosses.
HOJE
Hoje sou
tudo teu
Para que
juntes pedaços
E me
colhas desse frio.
Um leite
quente me sirvas:
Hoje,
teu menino
Em teu
ventre estou
Preciso –
cuidado
Que me
adormeças
Em navios
piratas, viaje
Com cigarras,
cante
A baratinha
da neve, salve.
Hoje não
quero ser o lobo
Venho pra
teus braços e
Minha cabeça
no teu colo, deito
E espero
tua mão
Em meus
cabelos
Cantigas
de ninar cantes.
Hoje morto
de cansaço
Faço de
ti o cais:
Nas barras
de tuas saias.
Nesta
noite criança, sou
É preciso,
que não durmas
Hoje sou
medo vazio
Indomável
solidão escura.
O AMOR E
O TEMPO
De assalto
O amor –
sendo invento
Dos sonhos,
através do tempo
Quando não
encontra seu laço
É revoada
de pássaros, a vontade
Da ampulheta,
no horizonte.
De areia
sua teia fia
Solitária
espera outro
Transeunte,
a noite.
ABRIL
NUM DIA DE SOL
Quero falar
do meu tempo
Não importa
se trago no peito, desatada
Essa dor
informe, canto avesso:
Falo ao
vento ácido
E calo
por amor:
A solidão
mais que o medo, é áspera
Essa manhã
doendo na pele
É flâmula
abrasada.
Lavro os
rubros signos que inventei
Sob os cílios
do sol:
A cidade
dos homens
Me cobre
com suas asas de cera.
SINA
Ao emergia
de suas águas
Abril era
apenas sina
Quando disparou
a ampulheta:
Do seu
tempo
Desvendou
seu viço em minhas retinas.
Abril era
crivo em minha sina
Quando seu
tempo chegou
Venceu a
mim
Seus medos
e cismas.
ERA
TARDE, UM ABRIL
Quando o
mundo se desvendou
Sobre minha
pele
Replicou
seu silêncio:
- era
noite de abril.
Marcou com
garras
As faces
dos seus cios
E seus
desejos de fera:
- a
carne crua, ave rara
Que sonhava
Com suas
asas rasas
Singrava
por eras
A fio, a
lã do carneiro
A faca,
o sacrifício, o desafio
Quando o
mundo se desnudou
Era tarde,
num abril.
POEMA DA
VIDA V
E no meu
jardim
Não descanso
nem pasto
Suas margaridas
de plástico
Dormem no
centro do meu corpo:
As marcas
que desenhastes para mim
Com minhas
armas desembainhadas
Parto sem
metro nem fim – confusas
Tuas águas
correm dentro de mim.
POEMA DA
VIDA XI
Para
onde o vento me levar
Levarei comigo
teu sal, teu grito
Em tua
areia, meus passos remidos.
Onde beberei
tua água
Será de
gozo teus gemidos
Minha nau
nas tuas entranhas
Seguirá seu
destino
Com seu
lápis nas mãos
Não obedecerei
tua lógica, teu trino
Escriturando
noutro caderno
Seu destino.
NO CÉU
AS ESTRELAS
O que
pode a palavra
Contra a
bala? A palavra
Lavra
Um tempo
Onde os
riscos no céu
Sejam estrelas
A nos
espreitar.
CAIS
Chego a
mim – como nau
Ao fundo
do oceano
Sem ter
encontrado
Seu cais,
náufrago dos sonhos
Sem ter
vencido
Madrugadas.
NASCEDOURO
II
Do nascer
do poeta
Restam cicatrizes
de versos
Inacabados,
sonhos de palavras
Esquecidas
num mote amordaçado.
Resta o
silêncio
Tramando
no silo do papel
A abolição
dos seus signos.
NO VÉU
DA NOITE
Quando o
véu da noite cai
Em tua
cama te desvenda
Nua com
o sol nas mãos, a manhã:
A linha
que divide norte
E sul de
tuas planícies – a água
Escorre,
o lodo e o sal:
Fremindo
teu horizonte nasce
De tudo
que virou lamaçal
Na noite
viva tua agonia:
Na cama
nua
A noite
desce.
A
AVE-BALA
João
A “ave-bala”
aninhou-se mais uma, vez
Na certeza
do nordeste
Na cabeça
de Antonio
Noturna
suspirou
Pela veia
latente
E mais
uma vida se foi
Quando a
“ave-bala” alojou-se
Muitos Antonios,
Pedros e tantos
Quanto mais
quisesse
Se derramariam
por sua vontade
Nos ficamos
Complacentes
Alvos
Espiando
tudo.
FREDERICO
SPENCER – É poeta, sociólogo e psicopedagogo, filho do jornalista, cineasta e Patrimônio
Vivo de Pernambuco, Fernando Spencer, autor dos livros Portal do Tempo (Bagaço,
1988), Quadrantes Urbanos (LivroRápido, 2006) e recém lançado Abril Sitiado
(Bagaço, 2011). É formado em Ciências Sociais pela Unicap e pós-graduado em
Psicopedagogia pela Universidade Gama Filho (RJ), com a monografia O atual
modelo pedagógico e a globalização sob a ótica da psicopedagogia. Ele foi vencedor
do Premio Gervásio Fioravanti da Academia Pernambucana de Letras, em 1985, é
membro da UBE-PE e foi incluído nas antologias Poesia Viva do Recife,
organizada por Juareiz Coreeya, e no Album Artistico do Recife, organizado pelo
poeta Jaci Bezerra. Ele edita os seus trabalhos no Recanto das Letras. Sobre o
livro Abril Sitiado, o escritor e jornalista Maurício Melo Júnior falou: “[...] Frederico, embora impregnado da temática
Marginal – confrontos políticos e desesperos de amor – vai além ao se impor
outra estética. Seus versos já não privilegiam a linguagem intencionalmente
descuidada e cotidiana, ao contrário há uma atenção com a carpintaria com a
confecção frasal [...] E dando os tramites por findos, preciso se faz dizer que
Frederico Spencer é um poeta da contemporaneidade. Pensa e expressa seu tempo
com uma lira doída em suas sangrias naturais, mas carrega a esperança na ponta
dos dedos”. Por isso, confira o livro, eu recomendo.
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