Imagem: foto de Derinha Rocha.
ABANDONO
Eu vi o poeta chorar
Numa sala exígua
Um canto remoto da casa
Voluntário eremita
De alados braços inertes
Um goleiro vencido no lance
Eu vi o seu choro
Desolada criança
Sem seu brinquedo preferido
E o seu brinquedo
É olhar nos olhos
Um calor de ternura
Cumplicidade
É sentir o coração
Falar alto
Um simples gesto
É a alegria por todos compartilhada
(os outros não têm lágrimas
em sua soez atitude)
Eu vi o seu choro
lágrimas sem dolo
lágrimas dos afeitos à guerra
em defesa do amor
Quem ama inventa o que vive
E chorando
Deixou tudo para trás
E chorando
Seu esforço é viver
Um futuro num quadro negro qualquer
Os sonhos se derretendo na solidão
O seu choro
Tangido feito necas para o chão
Em palpos de aranha
O seu choro
Pelo que fez e pelo que poderá fazer
- Uma fatia de tempo de não se lembrar
E chorava baixinho
Um punhado de gratidão
O seu suficiente conteúdo mágico
Era a revelação
E mesmo se valendo das lágrimas
Ainda canta
Para os que mal saíram do neolítico
Para os que não enxergam um palmo além do nariz
Ainda canta praqui – o lugar dos ofendidos
Dos ignorados
Eu vi o seu choro
De quem não tem farol na noite
Nem uma mão no dia
Um tinido no escuro
Um estalido no peito
Eu vi o seu choro de quem errou de veia e maldisse a sorte
Sacralizou o profano
E profanou o sagrado
Mera prece a malograr
Era um choro no seu mundo secreto que é um ermo
Um ermo onde cabem todos seus sonhos
Sonhos de tênue felicidade
Um bônus do sofrer
Eu vi o seu choro onde todo dia sua esperança
De fôlego agitado
Pra nos dizer da vida
Uma canção de chorar o sorriso pra todo mundo.