terça-feira, novembro 30, 2010
GILBERTO MENDONÇA TELES
ALGUNS POEMAS DA HORA ABERTA GILBERTO MENDONÇA TELES
GENIS IRRITABILE VATUM
Sou um poeta de água doce,
Banho-me em rios, fontes, lagos:
A minha musa sempre trouxe
A inspiração de alguns afagos.
Sou um poeta de assobio,
Trauteio notas nunca dantes
A minha musa está no cio
Dessas vogais e consoantes.
Sou um poeta bordalengo
Na lengalenga desta língua:
Se o meu poema é um monstrengo,
Talvez a musa esteja à míngua...
Sou um poeta de província
Passando férias na cidade:
Minha palavra é lance, é lince
A minha musa de alvaiade.
Sou um poeta cabotino
Que marcha teso como um cabo:
A minha musa toca o sino
Enquanto a porca torce o rabo.
Sou poetinha e poetastro,
Cheio de estrelas e estrilos:
A minha musa vem de rastro,
Voando baixo como os grilos.
E assim vou eu e assim vai ela,
De vez em quando é que nos vemos:
Ela no azul de um barco a vela,
Eu de canoa, mas sem remos.
HINO À TERRA
Terra, tu és a mãe! No teu ventre fecundo
A seiva do amanhã circula e revigora
A vida que reténs nas entranhas, no fundo
De tua alma que se agira em estos de pletora.
Quando o arado sulcar, numa próxima aurora,
O teu seio nutriz e o teu corpo rotundo,
Hás-de gerar, contente, ao lado de outra flora,
A planta do porvir e outra flor para o mundo.
Pois, num sopro de alento a andar de pólo a pólo,
Fertilizando todo o limo de teu solo
Num bafo de fartura e num hálito de paz,
Novas searas virão aurorizar-te a pele
E, nas graças do olhar benigno de Cibele,
Novas safras de furo à multidão darás.
HORA ABERTA
Sou pontual assim como quem joga
Uma pedra no mar.
Assim como quem bate na janela
E espera no jardim o acontecer.
Sou pontual assim como quem lança
Uma canção no rosto desdobrado
De quem chega.
No mais, sou pontual na complacência
De um deus oculto que boceja
Na hora aberta a sussurros e prodígios
Da vida acontecendo.
E que não basta.
LIÇÃO DE COISAS
As coisas se transformam
Se desnudam de suas vestes alvas.
Consideram a dimensão da página
E abrem a nossos olhos
(disfarçados) seu amplo
Mostruário de problemas.
Retém os transeuntes
Consumidos no fatigante
Espelho sem diálogo.
Sabem como dispor-se
À confidência das sílabas
Mais simples,
Desservidas
De visgo da saliva,
Impronunciada.
E mais que a noite múltipla
De estrelas, sabem deixar-se
Entre o silencio
E a palavra de amor,
Inadiável.
COMPOSIÇÃO
O amor põe suas mágicas
Em funcionamento.
O amor compõe, propõe, supõe,
Indispõe e interpõe
Sua adaga entre o ser
E o vazio do vicio
(a ser-viço do amor).
O amor compõe seus ácidos
Na linha mais ambígua
Da mão, entre o desejo
E o tato, nesse incêndio
Propagante e terrivel.
O amor dispõe seus plácidos
Novelos enredados
E fio a fio supõe
Sua mosca, seu tédio
E sua deslizante
Atração de suicídio
E adultério.
O amor
Propõe enigmas, trans-
Interpõe-se entre os seres
E apenas se indispõe
Para compor de novo
Sua casca e seu ovo.
SONETO GOIANO
Libertino não sei, mas gilbertino
Com certeza se diz, enviando setas
Contra o meu jeito arisco de menino,
Contra as minhas manias prediletas.
Há quem censure em mim o destino
De só querer as musas mais discretas;
E há quem me veja como um pente fino,
Como o mais democrata dos poetas.
Eu não sou bem assim. Sou até meio
Exigente e machista, mas receio
Que a mulher de Goiás – do Sul, do Norte –
Andou rezando alguma reza forte
Contra o meu jeito arisco de menino,
Contra as minhas paixões de gilbertino.
OLINDA
Aos olhos de quem chega, sobre o sal
E o sonho das viagens incompletas,
E antes de tudo – e límpida – projetas
Teus contornos de espuma e litoral.
Mais alto, o teu faro risca na cal
Das brumas e do tempo outras secretas
Ondulações que dormem inquietas
Nos teus braços de espuma e litoral.
E ao mar, ao vento, aos peixes e veleiros
Disputas, luminosa, os teus coqueiros
Desenhados no azul, como sinal
De que sobre este mar que te domina
Ergues teus olhos verdes de colina
E teus braços de espuma e litoral.
OFERTA
Toma! Nas tuas mãos aveludadas
Guarda meu coração, que é teu somente.
Dá-lhe as tuas caricias perfumadas,
Faze sorrir este vilão descrente.
Aquece-o no teu seio adolescente,
Rega-o com tuas lágrimas rosadas,
Afaga-o entre as mãos e um beijo ardente
Põe-lhe nas débeis fibras laceradas.
Talvez assim meu coração vivendo,
Nos teus seios de virgem se aquecendo,
Nos teus beijos de brasa se queimando,
Talvez, assim, meu coração, querida,
Sentindo o teu calor e a tua vida,
Nas tuas mãos despertará cantando.
RESIGNAÇÃO
Carrego nos braços leves
O peso-morto da vida,
Nem sinto o calor do tempo
Incinerando o meu gesto
Afeito a grandes surpresas
De noturnos sortilégios.
Estrelas não dizem nada
Da fala breve dos homens
A noite constrói mil planos
Que a madrugada aniquila
Na sua forja de pássaros.
Nem vento algum me revela
E inesperada mensagem
Que o tempo oculta ou dissolve
Na sua caixa de ferro.
Apenas, no dia inútil,
Vai aumentando, aumentando
O grito dos que não morrem
E se propõe ao mister
Dos horizontes futuros.
TECIDO
O texto tem sua face
De avesso na superfície:
É dia e noite, sintaxe
Do que se pensa , u se disse.
Tudo no texto é disfarce
Ritual de voz e artifício,
Como se tudo falasse
Por si mesmo, na planície.
Seja por dentro ou por fora,
Seja de lado ou durante,
O texto é sempre demora:
O descompasso da escrita
E da leitura no grande
Intervalo dos sentidos.
SEM-PÉ-NEM-CABEÇA
Vou pegar no seu pé, vou dar em cima
De você como nunca fiz ou faço.
Começo assim puxando pela rima,
Mandando beijo e imaginando abraço.
E, para entrar com o pé direito, juro
(e juro de pés juntos, mas bem vivo)
Que estou com o pé na estrada e estou maduro
Além de ser versado e possessivo.
Tomei ao pé da letra o juramento
E fiquei de pé firme no meu canto,
Assim nem um pé-d´água ou pé-de-vento
Pode arredar meu pé deste quebranto.
Um pé lá e outro cá, esta é de fato
A minha vida agora, repartido
Entre encontrar o pé deste sapato
E conservar das coisas o sentido.
Não posso dar no pé, sumir do mundo,
Nem sou um pé-rapado ou pedagogo...
E você sabe que não sou profundo,
Que brinco sempre de esconder o jogo.
Eu fiz meu pé-de-meia só pensando
Em lhe dar um presente bem bonito,
Mas houve algum pé-frio ou contrabando
E o melhor que pensei não foi escrito.
O jeito mesmo é lhe dizer que um dia
Vou pegar no seu pé, seguir seu rumo:
Quero ter um só lado – o da poesia,
Mas ser seu pesadelo de consumo.
Não tenho um pé-de-coelho, nem de trevo,
Nem dos tas goiaisis sou descendente.
Provendo dos sacis: tudo o que escrevo
Tem algo de travesso ou de indecente.
Não pelo pé-de-mesa, que não tenho,
Mas pelo pé-de-cabra da caneta,
Pela garapa, pelo mel de engenho,
Não sei se do saci ou do capeta.
Sei é que nesta história que não finda
Pego na sua mão, fico ao seu lado
E vejo que você ficou mais linda
E eu com o pé quebrado.
TIMBRE
Tudo pode a palavra enquanto peça,
Coisa de uso comum, quinquilharias:
Ela sempre se dá no que começa
E não se exibe toda à luz do dia.
Vive rente da noite, a desdobrar-se
A se mostrar difícil na visita:
Quanto mais dissimula o seu disfarce,
Mais se consente em figurar na escrita.
Anda sempre ao dispor – peixe sem isca,
Fóssil na prateleira etiquetado:
Certo modo de ser da forma arisca,
Certo jeito de tempo e de cuidado.
Às vezes não tem modo nem tem jeito,
Mas fia seu desejo de sentido,
Alguma dor azul dentro do peito,
O timbre de um verão desconhecido.
Reduzida à vogal, ao mais interno,
Se nutre de silêncio e de saliva:
A folha que arrancaram do caderno,
O barco de papel, mas à deriva.
Nada pode, no entanto, sem a fúria,
Sem o matiz do corpo na piscina:
A imagem só é bela se há luxúria,
Se há sugestão de sombras na cortina.
DA FIGURA
Atravessei o azul da noite para
Se inscrever num poema, mas, no fundo
Queria ver também como ficara
Sonhando com princesa um vagabundo.
Queria achar uma palavra rara
Para te dar, algum sinal profundo
Que, através de teu nome, atravessara
Todas as formas líricas do mundo.
Tentei tirar da noite alguma imagem
Que fosse apenas tua, alguma lente
Que te ampliasse dentro da linguagem,
Que te cavasse o espaço da figura
Mas nunca te mostrasse inteiramente
Nas soluções mais fáceis da leitura.
SONHEMA
É à noite que as palavras
Se recolhem ao coração,
Para não poluírem demais
Os olhos e os ouvidos
Desses eternos apaixonados
Que procuram na poesia
O que se perde e ganha
Como um pão-nosso de cada dia.
À noite elas se projetam
Nas paredes e se voltam
Para dentro dos poemas,
Como um sonhema, um termo assim,
Uma dessas coisas, meio difusas,
Um tanto aladas
E cada vez mais caladas
E cada vez mais sem fim.
Só a noite sabe organizar
Melhor o sentido das horas,
Inventando relógios que não
Existem na nossa coleção:
Um aparelho de marcar, por exemplo,
As ruas e pontos da cidade,
Onde ficaram para sempre
As nossas formas de saudade.
A noite é mesmo úmida
E fragmentada, é reticente
E tímida como alguém
Que procura um subterfúgio,
Mas sabendo que não adianta
Nada o encontrar,
Uma vez que o mundo anda agora
De pernas para o ar.
AS PORTAS DE OURO QUE SE VÃO ABRINDO
A minha vida foi sempre assim
Me fechavam uma porta
Eu abria outra
Me fechavam uma porta
Eu abria outra
Me fechavam uma porta
Eu abria outra
A minha vida foi sempre assim
Só abrindo as portas que não tem fim.
PARÓDIA
Todos os dias, minhas Flor, eu saio
Cabisbaixo e vencido, e sem futuro:
D. Quixote no site do esconjuro
Triste figura num cavalo baio.
O pior, o real, o mais escuro,
Ainda está no fundo do balaio:
O que um da sonhamos num desmaio,
O que se vai caindo de maduro.
Todos os dias, minhas flor, descubro
Que lá se foram junho, julho, outubro,
Que lá se foi o tempo e o seu rumor,
Deixando apenas, numa casa em obra,
Um resto de beleza, alguma sobra
Do que por certo se chamava amor.
VALSA TRISTE
Os teus princípios, que são precípuos
Que são modelos, que são reais:
São talvez ilhas em que dedilhas
As rendondilhas do nunca mais.
Os teus princípios são precípuos,
Fossas profundas, céus abissais,
Por onde passo buscando espaço
No descompasso do nunca mais.
Os teus princípios não são propícios
Às aventuras do mar sem cais:
Tem o seu mito, o seu infinito
E o pós-escrito do nunca mais.
Os teus princípios, próprios, precisos,
Seguem teu corpo por onde vais
Levam adiante, altissonante,
O triste itinerante do nunca mais.
Os teus princípios – edições princeps
De manuscritos originais –
Não tem leitura, tem a censura
E a conjectura do nunca mais.
Os teus princípios são os princípios
De tudo aquilo que tanto faz:
Nuvem de fogo, carta de jogo
No desafogo do nunca mais.
ESTUDO
Ao meu apelo nada falta,
Bem mesmo a capela da Baixa,
Tudo se quer ali e tudo
Descobre a forma abandonada.
Quase estrangulo a eternidade
Que me recita a cada instante
O que se perde no profundo
De sua essência e superfície.
O que não vejo é que domina
A cor mais lúcida e submissa:
A combativa, a que viaja
E não te encontra – rua, estátua.
Perfil de escultura, começo
Do que me esgota e determina:
Desejo agudo de encontrar-te,
Esperança sem paciência,
Pedra, ardósia, madeira, zinco
E mais o branco do papel,
Tudo o que te propõe exata
No teu devaneio e contorno.
No fundo o tempo está detido
Na sua bruma e movimento:
Piso, sótão, bosque, penumbra
Recinto escuro e claridade,
Tudo, tudo e até o longínquo
Mais uma vez se faz contíguo:
Forma de cama e de relógio
Na sombra inquieta da aroeira.
Mas algo se abre a contrapelo
No seu casulo de silencio:
Franja de luz, ternura extrema
Que borda a letra do poema.
IMPROVISO
De gênero só sei do alimentício,
Dos de primeira e vã necessidade,
Dos que tem em si mesmo o seu inicio
E sua própria lei e realidade.
Dos literários se como uma grade
Entre a imaginação e o precipício,
Uma coisa sem forma e densidade,
Nascimento de imagens ex-officio.
Sou lírico nas horas mais confusas,
Sou épico na luz e muita treva
E trágico sem sê-lo, na ironia
Do meu jeito de andar beijando as musas
Nesta facilidade que me leva
A ser um distante na poesia.
SE...
Se meu soneto fosse tempestade,
Se cada verso dele um pé-de-vento,
Se sua forma-fixa, seu acento
Enchessem de relâmpago a cidade;
Se granizo as palavras, num momento,
E se fosse trovão sua unidade,
E se chuva seu ritmo e novidade,
Se raio, seu perfil e andamentos;
Se meu soneto fosse uma enxurrada
De imagens, um caudal intempestivo,
Algo do fim do mundo e seus sinais,
Quem sabe se o dilúvio fosse nada
E o soneto um arco-íris incoativo
Sobre o mar das consoantes e vogais.
GILBERTO MENDONÇA TELES - O poeta, advogado e professor universitário de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira, Gilberto Mendonça Teles, é formado em Letras Neolatinas na Faculdade de Filosofia da Universidade de Goiás e, também, bacharel em Direito na mesma universidade. Defendeu a tese de doutorado em Letras, Drummond: A Estilística da Repetição, publicada em 1970 (Ed. J. Olympio), na PUC/RS. Publicou seu primeiro livro de poesia, Alvorada, em 1955 e sua obra poética ainda inclui os livros Arte de Armar (1977), Nominais (1993) e & Cone de Sombras (1995), entre outros. Já recebeu diversos prêmios literários e teve reunida toda sua obra poética no volume Hora Aberta – Poemas Reunidos. Veja a entrevista dele no Guia de Poesia e alguns dos poemas eróticos do livro Hora Aberta.
FONTE:
TELES, Gilberto Mendonça. Hora aberta: poemas reunidos. Petrópolis: Vozes, 2002.
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