terça-feira, março 18, 2008

POETAS GAUCHOS



MARIO QUINTANA

DE REPENTE

Olho-te espantado:
Tu és uma estrela do mar.
Um mistério estranho.
Não sei...
No entanto,
O livro que eu lesse,
O livro na mão,
Era sempre o teu seio!
Tu estavas no morno da grama,
Na polpa saborosa do pão...
Mas agora encheram-se de sombra os cântaros
E só o meu cavalo pasta na solidão.

DA AMARGA SABEDORIA

Conhecer a si mesmo e aos outros... ver ao mal
Com mais clareza... ó triste e doloroso dom!
E sofrer mais que todos, no final,
Sem o consolo de ter sido bom.

DA REALIDADE

O sumo bem só no ideal perdura...
Ah! Quanta vez a vida nos revela
Que “a saudade da amada criatura”
É bem melhor do que a presença dela...

DA MORTE

Um dia... pronto!.... me acabo.
Pois seja o que tem de ser.
Morrer que me importa?.... o diabo
É deixar de viver.

DAS UTOPIAS

Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las....
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!

DA MODERAÇÃO

Cuidado! Muito cuidado...
Mesmo no bom caminho urge medida e jeito.
Pois ninguém se parece tanto um celerado
Como um santo perfeito.

DA VOLUPTUOSIDADE

Tudo, mesmo a velhice, mesmo a doença,
Tudo comporta o seu prazer....
E até o pobre moribundo pensa
Na maneira mais suave de morrer.

DO OUTRO MUNDO

Mandou chamar um moribundo
Seus inimigos e abraçá-los quis.
“Bem se vê (um então lhe diz)
que já não és deste mundo...”

DO MAL E DO BEM

Todos têm seu encanto: os santos e os corruptos.
Não há coisa, na vida, inteiramente má.
Tu dizes que a verdade produz frutos...
Já viste as flores que a mentira dá?

DA RIQUEZA

O dinheiro não traz venturas, certamente.
Mas dá algum conforto... e em verdade te digo:
Sempre é melhor chorar junto á lareira quente
Do que na rua, ao desabrigo.

DAS BELAS FRASES

Frases felizes.... frases encantadas....
Ó festa dos ouvidos!
Sempre há tolices muito bem ornadas....
Como há pacóvios muito bem vestidos.

DA SÁTIRA

A sátira é um espelho: em sua face nua,
Fielmente refletidas,
Descobres, de uma em uma, as caras conhecidas,
E nunca vês a tua....

DAS ILUSÕES

Meu saco de ilusões, bem cheio tive-o.
Com ele ia subindo a ladeira da vida.
E, no entretanto, após cada ilusão perdida....
Que extraordinária sensação de alivio!

DOS HÓSPEDES

Esta vida é uma estranha hospedaria,
De onde se parte quase sempre às tontas,
Pois nunca as nossas malas estão prontas,
E a nossa conta nunca está em dia...

MENTIRA

A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer.

DA MANEIRA DE AMAR OS INIMIGOS

Novo inimigo tens? Não te cause pesar
Tão risonho motivo...
No dia em que triunfes, hás de achar
Na cara dele o teu prazer mais vivo.

DA MEDIOCRIDADE

Nossa alma incapaz e pequenina
Mais complacência que irrisão merece.
Se ninguém é tão bom quanto imagina,
Também não é tão mau como parece.

O POEMA

Uma formiguinha atravessa, em diagonal, a página ainda em branco. Mas ele, aquela noite, não escreveu nada. Para quê? Se por ali já havia passado o frêmito e o mistério da vida...

DO HOMO SAPIENS

E eis que, ante a infinita criação,
O próprio Deus parou, desconcertado e mudo!
Num sorriso, inventou o homo sapiens, então,
Para que lhe explicasse aquilo tudo...

CARRETO

Amar é mudar a alma de casa.

DA ETERNA PROCURA

Só o desejo inquieto, que não passa,
Faz o encanto da coisa desejada...
E terminamos desdenhando a caça
Pela doida aventura da caçada.

XXIV

A ciranda rodava no meio do mundo,
No meio do mundo a ciranda rodava.
E quando a ciranda parava um segundo,
Um grilo, sozinho no mundo, cantava...
Dali a três quadras o mundo acabava.
Dali a três quadras, num valo profundo...
Bem junto com a rua o mundo acabava,
Rodava a ciranda no meio do mundo....
E Nosso Senhor era ali que morava,
Por trás das estrelas, cuidando o seu mundo...
E quando a ciranda por fim terminava
E o silêncio, em tudo, era mais profundo,
Nosso Senhor esperava... esperava....
Cofiando as suas barbas de Pedro Segundo.

DO EXERCICIO DA FILOSOFIA

Como o burrico mourejando à nora,
A mente humana sempre as mesmas voltas dá....
Tolice alguma nos ocorrerá
Que não a tenha dito um sábio grego outrora...

CANÇÃO DE OUTONO

O outono toca realejo
No pátio da minha vida.
Velha canção, sempre a mesma,
Sob a vidraça descida.
Tristeza? Encanto? Desejo:
Como é possível sabê-lo?
Um gozo incerto e dorido
De caricia a contrapelo...
Partir, ó alma, que dizes?
Colher as horas, em suma...
Mas os caminhos do outono
Vão dar em parte alguma.

DO CAPÍTULO PRIMEIRO DO GÊNESIS

Sesteava Adão. Quando, sem mais aquela,
Se achega Jeová e diz-lhe malicioso:
“Dorme, que este é o teu último repouso”.
E retirou-lhe Eva da costela.

XVII

Da primeira vez em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha....
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha...
E hoje, dos meus cadáveres, eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada....
Arde um toco de vela, amarelada...
Como o único bem que me ficou!
Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!
Ah! Desta mão, avaramente adunca,
Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!
Aves da noite! Asas do horror! Vejai!
Que a luz, trêmula e triste como um ai,
A luz do morto não se apaga nunca!

DA FELICIDADE

Quantas vezes a gente, em busca da ventura,
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura,
Tendo-os na ponta do nariz!

MÁRIO QUINTANA – o poeta, tradutor e jornalista gaúcho Mario Quintana (1906-1994) é autor de uma expressiva obra, dentre elas, A Rua dos Catavento, O aprendiz de feiticeiro, Espelho mágico, Quintanares, Baú de espantos, dentre outros.

FONTE:
QUINTANA, Mario. Poesias. São Paulo: Globo, 1989.

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