AFONSO PAULO LINS – O poeta pernambucano Afonso Paulo Lins, como
eu já dissera em materiais veiculados no Fórum do Guia de Poesia e no Música,Teatro & Cia, foi e continua sendo um dos meus parentes mais responsáveis
pela minha dedicação à literatura e à música. Melhor dizendo, toda minha
ligação com as artes eu devo à contribuição irrestrita que esse ser humano
iluminado sempre dedicou tanto aos mais jovens, como a todos que tivessem a
graça de tê-lo por amizade.
Foi exatamente ele que, eu ainda menino, me iniciou na música desde
a erudita, o rock progressivo, o jazz, a new age, até as contemporâneas
expressões múltiplas da música universal. Ou seja, foi exatamente ele que me
apresentou de Bach a Cage, de Villa Lobos ao Al Di Meola, Egberto Gismonti,
Paco de Lucia e Laurindo Almeida, do Yes ao Belchior e Jamiroquai, enfim, o meu
contato com o universo musical foi ampliado exatamente pelo bom gosto e
disposição de apresentar pra gente sempre uma novidade nessa área. Foi daí que
me tornei um audiófilo inveterado.
Não diferente foi na literatura, quando por ele fui influenciado para
o hábito da leitura, ao me iniciar na obra de James Joyce, Guimarães Rosa, Jorge
Luis Borges e todos os autores da Literatura Fantástica latino-americana, bem
como de Ezra Pound, T. S. Eliot, Mallarmé, Paulo Leminski e José J. Veiga. O
exemplo dele de leitor mais que assíduo me influenciou definitivamente.
Melhor ainda que tudo isso, foi ele estar sempre disposto a
dialogar e dividir sua erudição com a gente da minha trupe, evidentemente muito
mais nova e desencontrada, com papos regados a uma boa cerveja aprofundando os
questionamentos que torpedeavam a nossa inexperiência. Isso fez com que eu e
vários amigos da minha geração fossêmos tão influenciados por sua conduta
incandescente, a ponto da gente imitá-lo sem o menor pudor. Éramos, então, verdadeiros
clones dele.
Afonso não é apenas poeta, é muito mais. Ele cursou Direito e Letras, publicou vários de seus
trabalho em jornais do Brasil e dos Estados Unidos e é autor de um livro de
contos ainda inédito, o Nordestenses, afora tantos outros que tenho certeza
estejam no seu baú literário. Também foi incluído na antologia “Poetas de
Palmares”, seleção e introdução de Juarez Correia, editado pela Editora
Palmares, em 1973.
Além disso, Afonso Paulo é uma figura daquelas do/de
bem, simpaticíssimo, acessível e sempre pronto para nos surpreender com um
outro olhar, uma outra visão e muitas outras possibilidades de se ver e encarar
a vida e o ser humano, contribuindo para o nosso melhor discernimento.
Hoje ele se encontra radicado nos Estados Unidos,
o que nos faz uma falta braba. E como sou assumidamente discípulo dele,
manifesto aqui minha eterna gratidão, registrando nesse modesto espaço, alguns
dos seus trabalhos literários.
TIO JERUSO
Tio Jeruso não mais existe
De seu ver e ouvir.
No seu recinto abobadado
O trancado do seu peito
Ferido se escancarava.
Onde havia o cheiro
Para quem chegasse
(munido de nariz)
De óleos e picaretas
Pregos e parafusos,
E o odor corrediço
De fechaduras.
Onde lhe avistamos uma tarde
Carregar ao peito as mãos duras
Como se de súbito tivesse resolvido
Amolegar na raiz de sua dor
O enfermo coração.
SINTOMA
Arcanjo Gabriel chegou,
Como de hábito,
Para nunciar um parto
Numa virgem qualquer
Aqui de baixo.
Infelizmente, sua tarefa
Estranhamente dificultou-se
E acabou, todo confundido,
Metendo-se numa farra
E estrangulando a citada virgem.
Consta:
Depois suicidou-se na latrina
Enforcando-se num rolo de papel higiênico
E descendo pela descarga
Que ele próprio acionou.
UBIRAJARA
A ferida
Comeu-te o rosto
E a vida
De trinta e três anos.
Mas, tu disseste, cara de churrasco:
O Senhor é meu pastor, nada me faltará”.
O VERBO SUSPENSO
O mais humilde, honesto
E solitário dos homens
É o que está nu.
(isto acontece quando as palavras
Submersas vão à bancarrota)
- Estive nu
E a todos minha nuice
A limpeza, a detergência
Dessa nudez estampada
Desiludiu.
PALMARÁGUAS TROMBUDAS
“Enverga a lamina/O
cirurgião ferido/E com ela torta/Examina o enigma/Da cicatriz e da dor” T.S.
Eliot (Four Quartets)
Havia de ser que toda
esta água libertada voltava do ceu. Chuva que se amontoava, se derramava, mas
em queda, ainda não sabia que se ia tornar rios, ladeira abaixo. Era uma
revoada dáguas.
Vinha de enxurro, de
nuvens baixas, gordas, soltas, soberanas, sem servir a ninguem. Montada em si
mesma aguaceirava mata e montanha, sem aviso nem descanso. Era o mundo todo de
repente uma enorme cacimba? Até parecia um fogaréu líquido. Rios então corriam,
grávidos, suas margens já não mais servindo pra enjaular aquelas aguas. Diziam
que a chuva sabe caber um oceano em cada uma de suas gotas.
O terrestre da
montanha se desfazia liso e mole. Abarrotado barro recolhia humidade e, frouxo,
bafejava em sacolejo ladeira abaixo, em desempilho de lama e armazenadas pedras
enormes, no desmorroneio.
Arrastadas lamas,
bagulho e arenoso, em folga de reprêso atiravam-se ao adiante sem encontrar
fim. Em tudo um destapar de entulhos.
Via-se que no
engrossante da lama a água rebojava e dançava assustada, escorrendo pelo
rebisbaixo do ladeiro.
No derredor crescia
mata alagã.
O vento que bufejava
e rebufava empurrava as aguas em amontôo. Será que aquele vento em tanto se
enfuriava que se tinha talvez tornado um Tornado?
As águas soltas
corriam imperiais, coisa que semelhava um momento de folia.
Espalhados e
ajuntados iam pessoas e bichos, casas e mobilias, chupetas dos meninos, carros,
bicicletas e sapatos do povo. Aquilo assim era coisa que nao tinha o direito de
ser, de não poder caber na vida de ninguem.
No meio daquela noite
olhei: o ceu não retalhava luares antigos.
Tudo o que carecia de
parar de acontecer, acontecia. O vento se assoprava no ladeiroso, serra abaixo
trazia de empuxo quem fosse deixado pra tras, sacudia, tonteava e aturdia, que
dava de mexer e derrubar de pirambeira no meio do bananal.
Eram as águas
rebeldes, sem memoria, vertente em desentulhe, fazendo la embaixo um repentino
mar.
Em qualquer ponto que
passassem essas águas eram apertadas demais, não encontrando jeito ou maneira
de atravessar sem destruir. Carregavam balaustradas, terraços, terrenos e
alpendres. Moviam terras e pedronas rochosas enormes, montanheiras, bagulho e
pedregulho.
Vai que em tanto
momento se ouviu estrondo estúrdio la de cima, coisa que parecia vir da
cumeeira do ceu. Corriam bichos e gente com os braços levantados. Mais barro
pedra e agua se descarregavam de cima das ladeiras. Um de repente brejo cortava
o barro e levava mais casas e a fabrica de doces.
Dona Otavia, gorda e
velhusca, de nem metro e meio mexia-se dentro da casa, ocupava-se em acudição:
queria salvar os netinhos naquela escuridão dágua. Safrejou levar três que pôde
arrebatar pra lugar seguro por cima da agua. So não alcançou de salvar o resto,
que se afogaram junto dela, num cantinho da beira.
Seu Bento Madaleno,
pequeno e magrinho, homem de esparsas idéias, mas de coração perpétuo não media
de entender o todo inteiro daquilo.
Saído para o
trabalho, voltava pra não encontrar casa, mulher e filha levados, arrebanhados
no arrôjo do rio. Embutido em si mesmo nada falou. Nem gesticulava gesto
qualquer. Era assim fora do orçamento.
Sem exclamar,
guardava-se calado. Somente movia-se ao redor, sem dizer palavra, dava com a
cabeça, naquela mesma maneira, de tanto dó, a cabeça muito espêssa.
Mas já, em tempo se
reunia. Enfiou na cabeça o chapeu ate as orelhas. No imediato comunheteiro,
comungava agora com todos, se arranjava então de benfazejo: resolveu decidir,
juntou-se aos outros no ajudatório, ligeiro e de repente acudidor poderoso, ate
parecia o heroi da epopeia. Triunfante sapiente, sabendo fazer, participava da
socorrição, de qual modo que parecia glória. Movia-se destro, um anão-gigante,
de mãos duras, de duro trabalho, mãos cavalares, duro trabalhante. Agia com
tino e destrez nunca antes suspeitados, apto no acudir e salvar.
Dizem que, naquele
arroubo socorreu quantidade de gente e bichos. Mas de derrapando-se no
resvaladio, deu que derrubou-se de enxurreio, ate o fundo do buracão, onde
agora o rio se erguia em alturas, monarco, ao poder de aguas passadas.
Bento, de engulho,
sossobrou inteiro e mesmo apostou pelejar luta. Depois, afadigado se rendeu,
dando de se afundar naufrago, naufragabundo.
Encontraram-no além,
no outro dia, perfeitamente exato, morto no meio do lamaçal. Dava-se de
satisfeito: feito é o que tinha de ser feito, temporão. Ninguem lamentou.
Afundado na lama
parecia de algum modo mais velho, afracalhado, velhusco, mesmo avacalhado, naquele
tanto teor de pessoa.
Por tras dos morros
ventos persistiam, temporavelmente.