domingo, dezembro 23, 2012

FREDERICO SPENCER E ABRIL SITIADO



O RECIFE DE ABRIL NA POESIA DE FREDERICO SPENCER – Era eu menino aprendendo com a bicicleta nas areias de Boa Viagem: cabeça no vento pra todas as estripulias que traziam a satisfação da infância, queimando nos olhos a vontade de viver. Na adolescência fabriquei sonhos de nada e os incendiei no final de cada bebedeira trocando as pernas na Avenida Pinheiros, na Imbiribeira. E era no Largo da Paz que eu vivia a Espera dando murro em ponta de facas enquanto sorria o prazer com o banho tomado do hormônio feminino de Olinda a me carregar até o Janga onde acendia a ideia de sobreviver singrando a Rio Branco, o Cais do Apolo, a Pracinha do Diário, a Livro 7, os bares da revolução festeira, a cachaça das criações esquecidas, os pileques de Fernandinho e Gulu, as doidices cordelísticas do Giba Melo, a Bagaço, os cicios poéticos de Jaci Bezerra que me fez Pirata, a solidária mão do Juareiz Correya, os independentes do Espinhara, o Tobias Pro-Texto, os sermões filosofetílicos do Ângelo Monteiro, os birinaites do Baixa-Renda do Paulo Caldas e demais amigos e parceiros que compuseram minha Primeira Reunião e que vivem guardados nas minhas lembranças mais aguçadas. Era vivendo o Recife de janeiro a janeiro pra ter a vida além da conta e mérito.
Todas essas lembranças emergiram do nada com a leitura de Abril Sitiado, do poeta, sociólogo e psicopedagogo Frederico Spencer. Lembranças das boas recheadas de fracassos e venturas, aconchegos e deserções, visagens e dissensões, entusiasmos e veleidades. Recife que um dia foi minha realização de vida.


CARTA AOS AMIGOS

Nasci poeta
Na pele das palavras, teci-me
Tecido de sonhos e imagens
Do mundo, lancei
Minha rede sem haver mar
Nem terra
Nas paginas dos dias, amealhar
No fiel o imponderável pesar.
Nasci poeta
A palavra exata:
Vivo.

CANTIGA AO AMOR

Não sabia do amor
A agonia, como se amar
Fácil fosse, à noite só:
Imaginar-te chegar:
Se despindo na janela
Essa imensidão de mar
E de silêncio, fia a solidão
O teu canto dentro da noite
Vago sem ter nas mãos
Como se amar
Fácil, fosses.

HOJE

Hoje sou tudo teu
Para que juntes pedaços
E me colhas desse frio.
Um leite quente me sirvas:
Hoje, teu menino
Em teu ventre estou
Preciso – cuidado
Que me adormeças
Em navios piratas, viaje
Com cigarras, cante
A baratinha da neve, salve.
Hoje não quero ser o lobo
Venho pra teus braços e
Minha cabeça no teu colo, deito
E espero tua mão
Em meus cabelos
Cantigas de ninar cantes.
Hoje morto de cansaço
Faço de ti o cais:
Nas barras de tuas saias.
Nesta noite criança, sou
É preciso, que não durmas
Hoje sou medo vazio
Indomável solidão escura.

O AMOR E O TEMPO

De assalto
O amor – sendo invento
Dos sonhos, através do tempo
Quando não encontra seu laço
É revoada de pássaros, a vontade
Da ampulheta, no horizonte.
De areia sua teia fia
Solitária espera outro
Transeunte, a noite.

ABRIL NUM DIA DE SOL

Quero falar do meu tempo
Não importa se trago no peito, desatada
Essa dor informe, canto avesso:
Falo ao vento ácido
E calo por amor:
A solidão mais que o medo, é áspera
Essa manhã doendo na pele
É flâmula abrasada.
Lavro os rubros signos que inventei
Sob os cílios do sol:
A cidade dos homens
Me cobre com suas asas de cera.

SINA

Ao emergia de suas águas
Abril era apenas sina
Quando disparou a ampulheta:
Do seu tempo
Desvendou seu viço em minhas retinas.
Abril era crivo em minha sina
Quando seu tempo chegou
Venceu a mim
Seus medos e cismas.

ERA TARDE, UM ABRIL

Quando o mundo se desvendou
Sobre minha pele
Replicou seu silêncio:
- era noite de abril.
Marcou com garras
As faces dos seus cios
E seus desejos de fera:
- a carne crua, ave rara
Que sonhava
Com suas asas rasas
Singrava por eras
A fio, a lã do carneiro
A faca, o sacrifício, o desafio
Quando o mundo se desnudou
Era tarde, num abril.

POEMA DA VIDA V

E no meu jardim
Não descanso nem pasto
Suas margaridas de plástico
Dormem no centro do meu corpo:
As marcas que desenhastes para mim
Com minhas armas desembainhadas
Parto sem metro nem fim – confusas
Tuas águas correm dentro de mim.

POEMA DA VIDA XI

Para onde o vento me levar
Levarei comigo teu sal, teu grito
Em tua areia, meus passos remidos.
Onde beberei tua água
Será de gozo teus gemidos
Minha nau nas tuas entranhas
Seguirá seu destino
Com seu lápis nas mãos
Não obedecerei tua lógica, teu trino
Escriturando noutro caderno
Seu destino.

NO CÉU AS ESTRELAS

O que pode a palavra
Contra a bala? A palavra
Lavra
Um tempo
Onde os riscos no céu
Sejam estrelas
A nos espreitar.

CAIS

Chego a mim – como nau
Ao fundo do oceano
Sem ter encontrado
Seu cais, náufrago dos sonhos
Sem ter vencido
Madrugadas.

NASCEDOURO II

Do nascer do poeta
Restam cicatrizes de versos
Inacabados, sonhos de palavras
Esquecidas num mote amordaçado.
Resta o silêncio
Tramando no silo do papel
A abolição dos seus signos.

NO VÉU DA NOITE

Quando o véu da noite cai
Em tua cama te desvenda
Nua com o sol nas mãos, a manhã:
A linha que divide norte
E sul de tuas planícies – a água
Escorre, o lodo e o sal:
Fremindo teu horizonte nasce
De tudo que virou lamaçal
Na noite viva tua agonia:
Na cama nua
A noite desce.

A AVE-BALA

João
A “ave-bala” aninhou-se mais uma, vez
Na certeza do nordeste
Na cabeça de Antonio
Noturna suspirou
Pela veia latente
E mais uma vida se foi
Quando a “ave-bala” alojou-se
Muitos Antonios, Pedros e tantos
Quanto mais quisesse
Se derramariam por sua vontade
Nos ficamos
Complacentes
Alvos
Espiando tudo.


FREDERICO SPENCER – É poeta, sociólogo e psicopedagogo, filho do jornalista, cineasta e Patrimônio Vivo de Pernambuco, Fernando Spencer, autor dos livros Portal do Tempo (Bagaço, 1988), Quadrantes Urbanos (LivroRápido, 2006) e recém lançado Abril Sitiado (Bagaço, 2011). É formado em Ciências Sociais pela Unicap e pós-graduado em Psicopedagogia pela Universidade Gama Filho (RJ), com a monografia O atual modelo pedagógico e a globalização sob a ótica da psicopedagogia. Ele foi vencedor do Premio Gervásio Fioravanti da Academia Pernambucana de Letras, em 1985, é membro da UBE-PE e foi incluído nas antologias Poesia Viva do Recife, organizada por Juareiz Coreeya, e no Album Artistico do Recife, organizado pelo poeta Jaci Bezerra. Ele edita os seus trabalhos no Recanto das Letras. Sobre o livro Abril Sitiado, o escritor e jornalista Maurício Melo Júnior falou:  “[...] Frederico, embora impregnado da temática Marginal – confrontos políticos e desesperos de amor – vai além ao se impor outra estética. Seus versos já não privilegiam a linguagem intencionalmente descuidada e cotidiana, ao contrário há uma atenção com a carpintaria com a confecção frasal [...] E dando os tramites por findos, preciso se faz dizer que Frederico Spencer é um poeta da contemporaneidade. Pensa e expressa seu tempo com uma lira doída em suas sangrias naturais, mas carrega a esperança na ponta dos dedos”. Por isso, confira o livro, eu recomendo. 

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