quinta-feira, janeiro 19, 2012

AFONSO PAULO LINS



AFONSO PAULO LINS – O poeta pernambucano Afonso Paulo Lins, como eu já dissera em materiais veiculados no Fórum do Guia de Poesia e no Música,Teatro & Cia, foi e continua sendo um dos meus parentes mais responsáveis pela minha dedicação à literatura e à música. Melhor dizendo, toda minha ligação com as artes eu devo à contribuição irrestrita que esse ser humano iluminado sempre dedicou tanto aos mais jovens, como a todos que tivessem a graça de tê-lo por amizade.

Foi exatamente ele que, eu ainda menino, me iniciou na música desde a erudita, o rock progressivo, o jazz, a new age, até as contemporâneas expressões múltiplas da música universal. Ou seja, foi exatamente ele que me apresentou de Bach a Cage, de Villa Lobos ao Al Di Meola, Egberto Gismonti, Paco de Lucia e Laurindo Almeida, do Yes ao Belchior e Jamiroquai, enfim, o meu contato com o universo musical foi ampliado exatamente pelo bom gosto e disposição de apresentar pra gente sempre uma novidade nessa área. Foi daí que me tornei um audiófilo inveterado.

Não diferente foi na literatura, quando por ele fui influenciado para o hábito da leitura, ao me iniciar na obra de James Joyce, Guimarães Rosa, Jorge Luis Borges e todos os autores da Literatura Fantástica latino-americana, bem como de Ezra Pound, T. S. Eliot, Mallarmé, Paulo Leminski e José J. Veiga. O exemplo dele de leitor mais que assíduo me influenciou definitivamente.

Melhor ainda que tudo isso, foi ele estar sempre disposto a dialogar e dividir sua erudição com a gente da minha trupe, evidentemente muito mais nova e desencontrada, com papos regados a uma boa cerveja aprofundando os questionamentos que torpedeavam a nossa inexperiência. Isso fez com que eu e vários amigos da minha geração fossêmos tão influenciados por sua conduta incandescente, a ponto da gente imitá-lo sem o menor pudor. Éramos, então, verdadeiros clones dele.

Afonso não é apenas poeta, é muito mais. Ele cursou Direito e Letras, publicou vários de seus trabalho em jornais do Brasil e dos Estados Unidos e é autor de um livro de contos ainda inédito, o Nordestenses, afora tantos outros que tenho certeza estejam no seu baú literário. Também foi incluído na antologia “Poetas de Palmares”, seleção e introdução de Juarez Correia, editado pela Editora Palmares, em 1973.

Além disso, Afonso Paulo é uma figura daquelas do/de bem, simpaticíssimo, acessível e sempre pronto para nos surpreender com um outro olhar, uma outra visão e muitas outras possibilidades de se ver e encarar a vida e o ser humano, contribuindo para o nosso melhor discernimento.

Hoje ele se encontra radicado nos Estados Unidos, o que nos faz uma falta braba. E como sou assumidamente discípulo dele, manifesto aqui minha eterna gratidão, registrando nesse modesto espaço, alguns dos seus trabalhos literários.

TIO JERUSO

Tio Jeruso não mais existe
De seu ver e ouvir. 
No seu recinto abobadado 
O trancado do seu peito 
Ferido se escancarava. 
Onde havia o cheiro 
Para quem chegasse 
(munido de nariz) 
De óleos e picaretas 
Pregos e parafusos, 
E o odor corrediço 
De fechaduras. 
Onde lhe avistamos uma tarde 
Carregar ao peito as mãos duras 
Como se de súbito tivesse resolvido 
Amolegar na raiz de sua dor 
O enfermo coração.

SINTOMA

Arcanjo Gabriel chegou, 
Como de hábito, 
Para nunciar um parto 
Numa virgem qualquer 
Aqui de baixo. 
Infelizmente, sua tarefa 
Estranhamente dificultou-se 
E acabou, todo confundido, 
Metendo-se numa farra 
E estrangulando a citada virgem. 
Consta: 
Depois suicidou-se na latrina
Enforcando-se num rolo de papel higiênico 
E descendo pela descarga 
Que ele próprio acionou. 

UBIRAJARA

A ferida 
Comeu-te o rosto 
E a vida 
De trinta e três anos. 
Mas, tu disseste, cara de churrasco: 
O Senhor é meu pastor, nada me faltará”. 

O VERBO SUSPENSO

O mais humilde, honesto 
E solitário dos homens 
É o que está nu. 
(isto acontece quando as palavras 
Submersas vão à bancarrota) 
- Estive nu 
E a todos minha nuice 
A limpeza, a detergência 
Dessa nudez estampada 
Desiludiu.

PALMARÁGUAS TROMBUDAS

“Enverga a lamina/O cirurgião ferido/E com ela torta/Examina o enigma/Da cicatriz e da dor” T.S. Eliot (Four Quartets)

Havia de ser que toda esta água libertada voltava do ceu. Chuva que se amontoava, se derramava, mas em queda, ainda não sabia que se ia tornar rios, ladeira abaixo. Era uma revoada dáguas.
Vinha de enxurro, de nuvens baixas, gordas, soltas, soberanas, sem servir a ninguem. Montada em si mesma aguaceirava mata e montanha, sem aviso nem descanso. Era o mundo todo de repente uma enorme cacimba? Até parecia um fogaréu líquido. Rios então corriam, grávidos, suas margens já não mais servindo pra enjaular aquelas aguas. Diziam que a chuva sabe caber um oceano em cada uma de suas gotas.
O terrestre da montanha se desfazia liso e mole. Abarrotado barro recolhia humidade e, frouxo, bafejava em sacolejo ladeira abaixo, em desempilho de lama e armazenadas pedras enormes, no desmorroneio.
Arrastadas lamas, bagulho e arenoso, em folga de reprêso atiravam-se ao adiante sem encontrar fim. Em tudo um destapar de entulhos.
Via-se que no engrossante da lama a água rebojava e dançava assustada, escorrendo pelo rebisbaixo do ladeiro.
No derredor crescia mata alagã.
O vento que bufejava e rebufava empurrava as aguas em amontôo. Será que aquele vento em tanto se enfuriava que se tinha talvez tornado um Tornado?
As águas soltas corriam imperiais, coisa que semelhava um momento de folia.
Espalhados e ajuntados iam pessoas e bichos, casas e mobilias, chupetas dos meninos, carros, bicicletas e sapatos do povo. Aquilo assim era coisa que nao tinha o direito de ser, de não poder caber na vida de ninguem.
No meio daquela noite olhei: o ceu não retalhava luares antigos.
Tudo o que carecia de parar de acontecer, acontecia. O vento se assoprava no ladeiroso, serra abaixo trazia de empuxo quem fosse deixado pra tras, sacudia, tonteava e aturdia, que dava de mexer e derrubar de pirambeira no meio do bananal.
Eram as águas rebeldes, sem memoria, vertente em desentulhe, fazendo la embaixo um repentino mar.
Em qualquer ponto que passassem essas águas eram apertadas demais, não encontrando jeito ou maneira de atravessar sem destruir. Carregavam balaustradas, terraços, terrenos e alpendres. Moviam terras e pedronas rochosas enormes, montanheiras, bagulho e pedregulho.
Vai que em tanto momento se ouviu estrondo estúrdio la de cima, coisa que parecia vir da cumeeira do ceu. Corriam bichos e gente com os braços levantados. Mais barro pedra e agua se descarregavam de cima das ladeiras. Um de repente brejo cortava o barro e levava mais casas e a fabrica de doces.
Dona Otavia, gorda e velhusca, de nem metro e meio mexia-se dentro da casa, ocupava-se em acudição: queria salvar os netinhos naquela escuridão dágua. Safrejou levar três que pôde arrebatar pra lugar seguro por cima da agua. So não alcançou de salvar o resto, que se afogaram junto dela, num cantinho da beira.
Seu Bento Madaleno, pequeno e magrinho, homem de esparsas idéias, mas de coração perpétuo não media de entender o todo inteiro daquilo. 
Saído para o trabalho, voltava pra não encontrar casa, mulher e filha levados, arrebanhados no arrôjo do rio. Embutido em si mesmo nada falou. Nem gesticulava gesto qualquer. Era assim fora do orçamento. 
Sem exclamar, guardava-se calado. Somente movia-se ao redor, sem dizer palavra, dava com a cabeça, naquela mesma maneira, de tanto dó, a cabeça muito espêssa.
Mas já, em tempo se reunia. Enfiou na cabeça o chapeu ate as orelhas. No imediato comunheteiro, comungava agora com todos, se arranjava então de benfazejo: resolveu decidir, juntou-se aos outros no ajudatório, ligeiro e de repente acudidor poderoso, ate parecia o heroi da epopeia. Triunfante sapiente, sabendo fazer, participava da socorrição, de qual modo que parecia glória. Movia-se destro, um anão-gigante, de mãos duras, de duro trabalho, mãos cavalares, duro trabalhante. Agia com tino e destrez nunca antes suspeitados, apto no acudir e salvar.
Dizem que, naquele arroubo socorreu quantidade de gente e bichos. Mas de derrapando-se no resvaladio, deu que derrubou-se de enxurreio, ate o fundo do buracão, onde agora o rio se erguia em alturas, monarco, ao poder de aguas passadas.
Bento, de engulho, sossobrou inteiro e mesmo apostou pelejar luta. Depois, afadigado se rendeu, dando de se afundar naufrago, naufragabundo.
Encontraram-no além, no outro dia, perfeitamente exato, morto no meio do lamaçal. Dava-se de satisfeito: feito é o que tinha de ser feito, temporão. Ninguem lamentou.
Afundado na lama parecia de algum modo mais velho, afracalhado, velhusco, mesmo avacalhado, naquele tanto teor de pessoa.
Por tras dos morros ventos persistiam, temporavelmente.