terça-feira, março 11, 2008

POETAS PERNAMBUCANOS



ÂNGELO MONTEIRO

O RECIFE OCULTO*

Há o Recife que viveu em mim
E não o que eu vivi.
Há o Recife que acendeu minhas perplexidades
Quando ao passar abstraído em suas pontes
Atrás de mim deixei correndo as águas
Ao seu destino numero e só.
Há o Recife enflorado de presenças
Sem história. E há outro anfíbio e oculto
Plasmado pelas ânsias de uma fé intensa
À redondez das coisas óbvias.
Uma cidade é mais que uma cidade
Para todo o que foge às superfícies
E, atrás de encontros mais irmãos
Que a silhueta fria dos seus edificiios,
Busca descer às paragens mais secretas
Onde lateja o sangue das correntezas
E a alma viscosa dos seus pobres mangues
Ao seu cruzamento de ontens e amanhãs.
Por isso, para mim,
Que celebrei a falácia das auroras
E desprezei a dor velada dos crepúsculos
Fala mais alto o recife que eu não vi.
Aquele que está sempre de passagem
Como a rua passeada há muitos anos
Ou o reflexo distante da paisagem
Dos meus enganos e meus desenganos.
O Recife suspenso sobre as águas
Em memória dos sonhos desfolhados
Na lápide dos dias.

EXPECTAÇÃO Nº 1**

Não só compreendidos mas adivinhados
Quero que sejam os ventos de minha alma.
Assim me disse a voz por trás das portas
Que se fechavam sobre o meu destino,
Quando eram movediços todos os caminhos da terra
E a minha paciência era já uma forma de crueldade
Perante a agressão inocente, e não calculada, das coisas.
Eu era um pobre pontífice de tiara desgastada
Cuja benção apodrecia em mãos que já não sabiam abençoar.
O cansaço era a única atmosfera
Em que meu corpo e a minha alma jaziam.
E eu não sabia o que fazer desse cansaço
Até que me sobreveio um abalo
E a voz me falou, clamando no seu fogo enigmático,
Debatendo-se em meus ossos e animando minhas esperança
Que eu não sabia se existisse mais.
Eu não tinha mais que uma oferta de cinzas
No meu coração carbonizado:
Mas minha falsa vida, sob o seu hálito,
Viu destruídos os laços protetores
Que ainda me prendiam aos antigos enganos
E às tremulas aparências
Da face em que deixei de acreditar.
Louvada seja a voz no seu esforço
De nos fazer escravos dos seus dons.
Pois submissos servos nossos corpos
Aspiram no seu fogo ser aniquilados.
A voz que tem domínio sobre as portas
E habita a inviolada região dos selos:
E pela luz dos seus signos submete
As mais cansadas sendas e bandeiras.
Daí que seja vil qualquer esforço
Fora do movimento
Impresso pela voz em que nossos corpos.
O maior sentimento é um movimento
Do seu querer em nós, impresso e dado.
Se não formos submissos ao seu apelo de chamas
E não quisermos ser por elas incendiados,
Seremos pobres jazigos, sem a graça da morte,
Pois só depois de perdidos somos salvos.
(Se é que alguém um dia já foi salvo).
De qualquer modo nos perderemos,
Pois todo caminho leva à perdição.
O próprio caminho se perde quando achado,
E ai de quem se perde muito tarde.
A voz me revelou essas coisas
Pondo em meus ouvidos o beijo da promessa
De que as palavras – feras provocadas –
Seu destino de feras cumprirão,
E poderão nos levar a não sei quantas milhas
Dos ventes terrestres
Ao coração perturbado dos outros mafiosos de Deus.

EXPECTAÇÃO Nº 4**

Iniciei a minha vida pública
Semeando equívocos, de qualquer forma melhores
Que as pretensões habituais
Dos falsos sustentadores da ordem do mundo.
Iniciei a minha vida pública
Falando, quando deveria calar,
E calando, quando deveria falar.
Em nenhuma parte
Encontrei os seres de minha escolha:
Agregando-me àqueles sem parte alguma com minha alma
E desagregando-me de outros que deveriam estar ligados comigo.
Meu erro fundamental
Foi julgar que houvesse acaso no mundo.
Quando, mesmo entre os cultivadores do acaso,
Existe a misteriosa exigência de uma ordenação.
Não sou responsável pelos eclipses
Nem pelos cataclismos:
Eles por si dispensariam meu testemunho.
Mas sou responsável por ter traído minha própria voz,
Condescendendo com apelos estranhos à minha natureza.
Sou responsável por ter gerado
Das minhas próprias forças o antípoda.
E o Deus me recrimina em tom de benção,
E apesar de o ter vilmente traído,
Depois de confundir todas as vozes
(as dos anjos e as dos demônios)
ainda me faz reencontrar o eco sagrado de sua voz
há tanto tempo perdida.

ÂNGELO MONTEIRO - O poeta, filósofo, jornalista e ensaísta alagoano radicado no Recife, Ângelo Monteiro, é professor universitário, Mestre em Filosofia pela UFPE e já publicou vários livros de poesias e de ensaios, dentre eles, “O Inquisidor”**. Participou da antologia Poesia Viva do Recife*. Poesia Viva do Recife: nova edição da antologia homenageia a cidade em agosto A antologia POESIA VIVA DO RECIFE, lançada pela CEPE-Companhia Editora de Pernambuco, em 1996, com a participação de 100 poetas, será relançada, este ano, ampliada com a presença de 150 poetas pernambucanos, em homenagem à cidade no “6º. Festival Recifense de Literatura”, que ocorre em agosto. Na primeira edição, realizada por iniciativa do jornalista Evaldo Costa, diretor-presidente da CEPE (hoje secretário de Imprensa do Estado), o então Vice-Governador Jorge Gomes (hoje Secretário de Saúde do Estado) assinava a primeira orelha e o então Secretário da Fazenda Eduardo Campos (hoje Governador do Estado) assinava a segunda orelha, ressaltando que “feliz é a cidade que, como o Recife, pode orgulhar-se de ter na poesia uma parte essencial de sua substância vital.” Essa primeira edição contava com a participação destes 15 poetas, ausentes da nova edição, pelo fato de terem falecido : Alberto da Cunha Melo, Arnaldo Tobias, Audálio Alves, Celina de Holanda, Edmir Domingues, Estephânia Nogueira, Francisco Espinhara, Geraldino Brasil, João Cabral de Melo Neto, Mário Souto Maior, Nerivaldo Xavier, Paulo Cardoso, Potyguar Matos, Sílvio Roberto de Oliveira e Waldemar Lopes. O poeta e editor Juareiz Correya, organizador da antologia e idealizador da “Coleção Poesia da Cidade”, projeto da Nordestal Editora, que já publicou também a POESIA VIVA DE NATAL, em 1999, e tem prontas para publicação as antologias POESIA VIVA DE SÃO PAULO e POESIA VIVA DE MACEIÓ, explica que a nova edição da POESIA VIVA DO RECIFE, “embora desfalcada com a ausência desses nomes importantes da poesia pernambucana, hoje eternizados, apresenta, na medida do possível, uma seleção de nomes que, nas duas últimas décadas e nesta década, têm renovado a expressão poética em Pernambuco, sobretudo atuando na vida cultural recifense.” A segunda edição da antologia, revista e ampliada, além de preservar 85 poetas/poemas da primeira edição, publica textos, criados sobre o Recife, de alguns poetas já maduros e destes novos e novíssimos poetas que “vivem, amam e eternizam a cidade” : Adriana Perrucci, Aluísio Santos, Antonio Botelho, Ary Sergas Santos, Arnaud Mattoso, Carlos Cardoso, Carlos Maia, Cida Pedrosa, Cuinas Cervantes, Débora Brennand, Davino Sena, Delmo Montenegro, Eduardo Diógenes, Edvaldo Bronzeado, Esman Dias, Everardo Norões, Fábio Andrade, Fernanda Jardim, Fernando Araújo, Fernando Chile, Gustavo Krause, Ivan Maia, Ivan Marinho Filho, Joca de Oliveira, Jomard Muniz de Britto, José Almino de Alencar, José Terra, Josilene Corrêa, Lara, Lenilde Freitas, Liana Mesquita, Luciano Nunes, Luiz Carlos Dias, Malungo, Marcílio Medeiros, Marcos d’Morais, Mariana Arraes, Miró, Nivaldo Lemos, Odmar Braga, Paulo Jofilson, Pedro Américo de Farias, Raimundo de Moraes, Robson Sampaio, Rogério Generoso, Romero Amorim, Ronildo Maia Leite, Samuca Santos, Sérgio Augusto da Silveira, Sérgio Leandro, Silvana Menezes, Sílvio Hansen, Tarcísio Regueira, Wilson Vieira e Valmir Jordão, entre outros. * Poema incluído na antologia Poesia Viva do Recife. ** Poema incluído no livro “O Inquisidor”. São Paulo: Qurion, 1975.

Uma inquisição de baixo quilate - Por Ronaldo Castro*

"A Universidade Federal de Pernambuco, através do seu Departamento de Filosofia, acaba de ter negado, e pela segunda vez, uma simples progressão ao professor e poeta Ângelo Monteiro. Para quem conhece o grande poeta, esteta e ensaísta isso é um escândalo que torna, a priori, este ou qualquer outro artigo inútil. "Ai de nós - diz o poeta T.S. Eliot - que perdemos a sabedoria pelo conhecimento, e o conhecimento pela informação". E a filosofia é, sobretudo, sabedoria. As universidades não criam a inteligência, mas deveriam reconhecê-la, sob suas diversas formas, e não negar-lhe, farisaicamente, abrigo em sua morada. Não têm o Daimon e nem o toleram. Preferem antes a sombra dos administradores acadêmicos que a luz de um espírito livre e sedento de saber. O talento poético e filosófico do professor Ângelo Monteiro está imortalizado em sua obra vasta e profunda e mais ainda encarnado em sua própria vida pessoal. O inesquecível professor Alfredo Antunes, uma das poucas luzes desse já sombrio Departamento de Filosofia, pergunta: "Quem foi que disse que os Poetas têm que ficar de fora da "República"? Quem foi que propôs que sentimento e razão não devem dar-se as mãos?" Mas os doutores, representando a UFPE, não estavam interessados na coerência entre o ser e o conhecer e, sim, na posse das pequenas e lustrosas vantagens acadêmicas. Imagino que a poesia e a estética de Ângelo Monteiro sejam muito pouco aproveitáveis à instrumentalização do saber tão em voga. Mas não acredito que tenha havido nem mesmo esse mísero critério nessa inquisição. Ao saber do ocorrido procurei conhecer os métodos de avaliação e me certifiquei de sua miséria. Devo admitir que me surpreendi com a coerência das notas, impecavelmente uniformes, como é de praxe à burrice doutoral. Um certo isolamento monástico do poeta Ângelo Monteiro pode ter um aspecto anti-social, mas a solidão não alimentou toda a história da filosofia? Toda a nossa civilização não se nutriu até hoje desses solitários? Como comparar a verdadeira produção intelectual com a mera exibição de títulos acadêmicos? É um aspecto menor o fato de se ter uma personalidade mais ou menos social numa comunidade intelectual, ao contrário de certas comunidades onde a participação nos rituais sociais é fundamental. Mas creio que os Departamentos de Filosofia no Brasil estão tomados do esprit de corps. Na verdade os sindicatos europeus são bem mais modernos que as nossas elites intelectuais. É sintomático que o autor de O Inquisidor, sofra justamente uma inquisição, ainda que de baixo quilate. Mais simbólica ainda é a formação dos seus inquisidores. Há entre eles um ex-jesuíta (e por lembrar de suas aulas sobre Filosofia da Religião arrisco dizer que se trata de um jesuíta sem Jesus, pois que só buscava explicações materiais, sociológicas e psicológicas para a existência de Deus. Era espantoso!). Há ainda um especialista em Filosofia e Psicanálise e uma doutora na Psicologia do Desenvolvimento Cognitivo. É quando me dei conta de que o critério formal de participação na vida acadêmica, bem como a estatística kafkiana dos títulos, constituíam apenas uma mise en scene para confrontar o que realmente interessava: a alma do poeta diante do corpo filosófico, ou melhor, do cadáver. O peso psicanalítico dessa inquisição livrou a Universidade Federal de Pernambuco do pesadelo de um poeta que ama a beleza do segredo e do mistério. Devo admitir que os psicanalistas estavam bem afiados. A ironia em tudo isso é que esse veredicto do Departamento de Filosofia da UFPE na verdade coroa de êxito duas grandes obras do Ângelo Monteiro: o Tratado da Lavação da Burra, que trata da ausência de universalidade do "ser brasileiro" e O Inquisidor, onde vemos o poeta transcender as contingências. Quem viver verá! Aliás, já se vê!"

*Ronaldo Castro é escritor

VEJA MAIS:
GUIA DE POESIA
CRÔNICA DE AMOR
RÁDIO TATARITARITATÁ
SHOW TATARITARITATÁ