domingo, outubro 19, 2008

POETAS DE PERNAMBUCO



RISOMAR FASANARO

DRUMMONDIANDO

Quando nasci
Uma cigana vesga
Dessas que vivem nos becos
Disse:
- vai, mulher,
Toma a vassoura e o Bombril
Revoluciona o Brasil!
Mas relutei confiante
Arranjei emprego em Baco
Hoje sou independente
Saio ás seis do emprego
E começo outro trabalho
Aqui – sou rainha do lar –
(mas sem salário)
Louças se empilham na pia
E as roupas nos varais
Pra que tanta louça, meu Deus?
Pergunta meu coração
Porem “meu senhor”
Não pergunta nada
Apenas lê o jornal
Vida vida frágil vida
Se eu chamasse Rira
Seria Lee
Comporia uma canção
Vida, vida, frágil vida
Mais frágil é o meu fogão
Eu não devia te dizer
Mas essa jornada dupla
Cansa como o diabo!

EU QUERIA

Não sentir
Não sofrer
Ser de aço
Mas sou frágil
Sou porcelana
Quebro à toa.

ABISMO

Te vi do outro lado da rua
Mas o asfalto
Se fez rio
E eu,
Rio,
Não
Sei nadar.

MÃE

Eu te via batendo bolo
Costurando noite e dia
Vestidos lindos de rendas
Roupas que nunca vestias
Enquanto isso minha vida
Se alinhava sozinha
Pescando pitus e piabas
Subindo nos cajueiros
E foi de te ver, mãe,
Que um dia me fiz assim
Enquanto bordavas vidrilhos
Nos vestidos das grã-finas
Meus olhos teciam sombras
E se fizeram tão tristes
Foi esse teu jeito, mãe
Manso aceitando tudo
Que me deixou desse jeito
Foi de te ver, mãe,
Lavando, passando, varrendo
De um lado a outro correndo
Que me deixou desse jeito
Enquanto vendias roupas
Eu enfrentava a vida
Pão que o diabo amassou
E foi de te ver traída
Morta, ferida, sentida
Que resolvi ser assim
Os sonhos transpunham rios
Que nunca alcançaram mares
E tu navegavas ali
Comandante
De um barco sempre à deriva
O cheiro de manjericão
Em ti era tão natural
Como opium nas grã-finas
E foi tua filosofia
Ruim cm ele, pior sem ele
Que me tornou desgarrada
A querer apagar-te mansa
Em toda minha lembrança
Mas disso tudo ficou
Um fiapo de memória
Faísca de fogueira
Das festas de São João
Quando fazias canjica
Pés-de-moleque e pamonha
Enquanto ralavas milho
E espremias o coco
Minha vida se esfolava
Cada dia mais sozinha
E hoje até aprece
Que espremeste e tiraste
Alguma coisa de mim
Que ficou esse vazio
Essas memórias de mim
Esse cheiro de cajá
E esse travo de cajo
Pois é, mãe,
É por tudo isso
Que hoje eu sou assim.

SENZALA

A musica da senzala
Era a mesma da casa-grande
Apenas tocava
Mais feridas

AMPLITUDE

Voa como faz a asa branca
Faz como a asa branca
Volta!
Mesmo por vias tortas
Pela palavra morta
Voa, volta!
Mesmo que as chaminés
Escureçam nosso ar
Voa, volta!
Também no mar
Há tempestades,
Borracas
Mas sempre tem por perto
Um porto seguro
Voa, como faz a asa branca
Faz como a asa branca
Bolta!
A porta, a morta na janela
Aguardam o teu regresso
Querem ouvir teu verso
Escrito naquele bar
Daquela terra triste
Terra tão fria
Onde ainda existem
Girassóis.

AVE LATINA

Ave latina
Santificada América
Mãe nossa de cada dia
De cada hora
Abençoados sejam
Teus passos por estas ruas
Em que caminham
Pobres, mendigos e abandonados
Abertas sejam
Tuas santas asas
Pra que teu povo cante
Latinamente
A liberdade santa
Nossa de cada dia
De cada hora
Terra morena
Em cada esquina
Em cada beco
Incita sempre
Nossa coragem
Devora sempre
O nosso medo

GUERRA

A bota do soldado
Ficou na neve
A borboleta pousou
O olhar fotografou
Imortalizou o vôo
Da borboleta
Sobre a bota
Sob a bota,
Pé:
Morto.

VAGARES

Não olhes os meus vagares
Nem registra esses pesares
Que me vês
Passando agora
Tudo isso vai passar
E quando um dia voltares
À encosta dos meus mares
Sentirás o sol em mim
De um tempo que não viveste
Por isso não aprendeste
Que viver é perigoso
É muito perigoso
Mas que viver vale a pena
Há sempre um sol de manhã

CANTO FUGAZ

Esta voz que mora em mim
Um dia calará
Mas mesmo quando eu partir
Em outra garganta
De asas irá brotar
Este canto
Foi um dia
Prisioneiro do meu peito
Hoje há não é meu
Dádiva fugaz
Risco de luz
Dentro da escuridão
Gesto no espaço
Negando o não.

ESCREVER

Escrever é tecer de aranha
É sol nos fios de orvalho
Entrelaçadas malhas
Malhas tecendo a manhã
Escrever é morte no orgasmo
É morte que ninguém vê.

CHE GUEVARA

O outono tricota a primavera
Os homens assinam
Tratados de paz
Derrubam muros
Declaram guerras
Mas os dragões estão lá
Revivem nossos sonhos
De unicórnios azuis
Ele vive
Duro e terno
Vivo, eterno.

SANTO DIAS

Me perdoe por estes santos dias
Me perdoe por tanta violência
Por estas santas vias
Por estes dias santos
Meu espanto se cala
Se cala por inteiro
E não é pra me espantar
Tanto sangue sangra tanto
Tanto sangra e mina dor
Hasteio hoje a esperança
Da geração tatuada
No sudário em que devolvo
A Pindorama tomada
Com tua imagem gravada
Desfraldando nossa dor
Salve o pendão que agoniza
Na manchete do jornal
Salve o pendão que anoitece
Como morte natural
Santo dias santa hora
Em que eu te conheci
Bebo tua coagem
E te estampo na bandeira
Em que tantos enxugaram
O seu suor
Santo, santo, santo, santo
Não é o senhor do deserto
É este destino incerto
De sair pra não voltar

ARGONAUTA

O leme deste barco
Está sem rota
A quilha rebentou
Contra tantas tempestades
E eu me esqueci:
O barco era de crepom
E chovia naquela noite

TRISTEZA

Enquanto o leite esfria na mesa
Bebo tua tristeza e te prometo
Amanhã haverá tempo
Para rires todo o riso
Chorares todo o pranto
Amanhã haverá tempo
Para tomares teu leite
Quente
Enquanto eu,
Beberei tua alegria
Já que detesto leite.

SAGRAÇÃO

Quando o homem nasce
Duas coisas a vida lhe dá:
O sal e os sonhos
Uns só recebem sal:
São os poetas.

DESPEDIDA

Te avracei
Vendo o rio os flamboyants
E sabendo que partia
Te dizia minha dor
Os sons, o cheiro de cajás
De doce maresia
Adeus para nunca mais
E quando saí molhada
Do verde mar
Noturno de Olinda
Te agarrei
Fugindo desolada
Tentaste por amor
Reter-me ainda
Mas uma mulher
Os deuses sabem por que
Por mais que se embriague
Por mais que se disfarce
É chaga aberta que sangra
Não sabe como enganar
E ao deixar o porto
Meu coração menino
Navegante sem destino
Não pode nem sonhar.

UM DIA SER FELIZ

Você chega e me encontra
Em carne viva e ferida
Sangrando pelos poros
E quando você me abraça
Esqueço as desgraças
Que hoje li nos jornais
E ai me visto de noite
Me encho de estrelas
Me atrelo ao som
Das cordas do teu coração
E sonho um canto blue
De Billie em um hollyday
Você deita e me beija
Me ama me deseja
E assim a noite se esvai
Enquanto um sol vermelho
Aquece meus anseios no silencio do cais
Vem sob meus pés subindo manso
Da correnteza peixes no remanso
Mas logo vem o mar
E adia o dia de ser feliz.

LIÇÃO

Anos e anos cavei
O chão em busca de estrelas
Sem saber que me bastava
Olhar o céu para vê-las

INVENTARIO

O trancelim de prata
Deve ter mareado
A flauta de bambu
Comprada no frio de maio
Deve ter se rachado
E a madona que um dia
Pendurei em teu pescoço
Dee ter se perdido
Como te perdi
Como me perdi

BEIJA–FLOR

Queria te dizer
Que conheci Drummond
Que fui amiga de Elis
Que entrei na câmara do rei
Queria te dizer
Que fui musa do Chico
E tenho casa no Haiti
Queria te fazer cafuné
Te cantar cirandas
Te abraçar e beijar
Te fazer carinhos mil
Desses que todo mundo quer
Mas antes que abrisse a boca
E contasse essas mentiras
Teu vôo se fez azul e
Em minhas mãos...
Só ficaram penas...

FELICIDADE

Felicidade:
Gaivota de crepom
Contra a tempestade.

LEMISKANDO

Um bom poeta se faz
Na solidão dos bares
Nas noites insones
No desencontro das paixões
Na morte do amigo
Um bom poeta se faz
Na barra do dia
No corte da água
Da luz, do telefone
Um bom poema,
Senhores,
Leva anos

PELO TELEFONE

Uma noite lhe pedi
a lua e o mar
mas ele não conseguiu
nem sequer
Me amar

Quando amo
Sou gueixa
Preparo o banho
Faço massagem
Ouço tuas queixas
de pássaro são teus passos
ainda assim eu sigo
teu vôo
teus passos

quando te vais
fica em mim
o silêncio dos haicais

um dia vou tentar esquecer
esses cavalos mortos
essas árvores tombadas
e esses casarões caídos
um dia vou tentar esquecer
esse vinho bebido no escuro
e esse rádio mudo, mudo, mudo
um dia vou tentar esquecer
que partistes
sem dizer adeus

O que mais fica na gente
É a sensação das coisas
Inacabadas

Enquanto o leite esfria na mesa
Bebo tua tristeza e te prometo:
Amanhã haverá tempo
Para rires todo o riso
Chorares todo o pranto
Amanhã haverá tempo
Para tomares teu leite
Quente
Enquanto eu beberei tua alegria
Já que detesto leite

procura

a vida inteira cavei
o chão em busca de estrelas
sem saber que me bastava
olhar o céu
para vê-las

guerra

a bota do soldado
ficou na neve
a borboleta pousou
o olhar fotografou
imortalizando o vôo
da borboleta sobre a bota
e sob a bota um pé:
morto

tentativa

tentei o vôo dos pássaros
mas só me restou
a gaiola

a vida

a vida
flor de papel crepom
com tudo pra ser
perfeita
vivida
pura ilusão

o barco

o leme deste barco
está sem rumo
a quilha rebentou
contra a tempestade
e eu me esqueci
o barco era de crepom
e chovia naquela noite

RISOMAR FASANARO – a poeta, jornalista, professora pernambucana Risomar Fasanaro, é autora do livro “Eu, primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Também é autora do livrete de poesia “Casa Grande e Sem Sala” e tem alguns de seus contos e poesias nas antologias “O Buquê e o sonho” e “Contos de Desencontro” e em antologias escolares e apostilas de cursinhos vestibulares. Ela cursou Letras Clássicas na USP, foi militante contra a última ditadura militar no Brasil e participa do movimento cultural de Osasco, fundadora do Grupo cultural Veredas e editora da revista com o mesmo nome que o grupo publicava. Participou de vários festivais de poesia e de música em Osasco e outras cidades do país como letrista, tendo recebido vários prêmios. Trabalhou como redatora e colaboradora em alguns jornais de Osasco como o “Diário de Osasco”, “Jornal de Osasco”, “O Grande Osasco” e “Primeira Hora”.Publicou artigos nas revistas “Realidade” e “Planeta”. Ela possui alguns originais engavetados: são livros de contos, de poesia e três histórias para crianças.Atualmente está escrevendo um romance que ainda não recebeu um título.É uma história de amor.

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