quarta-feira, outubro 08, 2008

POETAS DO AMAZONAS



ANIBAL BEÇA

MEMORIAL DA FALA

“Poema é aquilo que não pode ser resumido.”
Paul Valéry
Entre lo que veo y digo,
entre lo que digo y callo,
entre lo que callo y sueño,
entre lo que sueño y olvido,
la poesia.
Octavio PaZ

E sendo no infinito o transitório
Que ao fim se alça finito no começo
Não quis a lauda muda sem rumor
Se não cantasse o fogo das estrelas
E nem tocasse as solas das pegadas
viageiras de impulso em meu trajeto.

Meu canto é facho aceso de cometa
Numa viagem cheia de regressos
Em que juntando sobras devastadas
Colhe do mar os ossos do desterro
Banhado pelo tempo que me esplende
Certo fulgor perene nessas águas.

O tempo que inda tenho pensa o tempo
E, no entanto me flagro duradouro.
Nas cinzas das desoras ainda há fogo
Aquece a pedra leve em brasa pouca
Riscando seu grafite pelos becos
Nos brancos muros cravo meu enigma.

Essa pedra se assoma na leveza
À procura do verbo da distância
Suavizado frágil som de pluma
Nada que pese habita esse silêncio:
Porão vazio sombra e brisa escassa
Fraco arrepio no poço estagnado.

O limo dessa pedra é meu avesso
Ora musgoso seda de serpente
Um filtro transmudando muitos ventos
Mas sempre alimentando na fatura
Um pé de verso antigo sem assombros
Uma pá revolvendo caligramas.

Sem esquecer a cifra do meu tempo:
Humor o chiste a gíria tudo conta
No canto do falar cotidiano.
O sol do preconceito não me abraça
Desde Quintana sei do céu singelo
De jaula aberta sei-me passarinho.

Importa na gaiola o bom alpiste
Que regurgito estrelas semeando
Se no chão vicejar cristal se funde.
Minha meta é a linguagem derramada
Líquida cantaria em tom de várzea
Que o solo em se plantando tudo dá.

E assim me assumo pedra diferente
Calcinado de múltiplas facetas:
Concreto fui na práxis da sintaxe
Viajei linossignos e haicais
Namoro o instinto que Breton me deu
E junto o sonho ao barro das metáforas.

Das cinzas trago a cal da duração
Para envolver no linho da memória
Os fatos dessas múmias testemunhas
Personagens presentes de um passado
Novelo que a nascente desenrola
O fio que se desfaz e afunda a foz.

Um velho espelho d’água se arrepia
Minhas águas se enrugam vincos crespos
Sopro incontido inventa nervos curvos.
Mano Narciso empurra-me a beleza
A sinuosa elipse em traços plácidos
E sabe que o diário olhar me afoga.

O rio que sou eu mesmo a se afogar
Na fala fluvial forte afluente
Pelos desvãos escuros dos peraus
Pelas corcovas de ondas e banzeiros
Pelas margens lambidas na passagem
Desliza musical por muitos ventres.

E vai e segue doce rumo ao sal
Nesse tempero de águas que se encontram
Amolecendo o barro adormecido
Alimentando ventos ruminantes
Para servir a crua refeição
Do vero humano fero assinalado.

Nessa cumplicidade também rega
O fruto suculento da alegria
Manso manjar de calma apetecida
Que se revela em pasto indignado
Diluindo alguns nacos dissonantes
De melodia turva em seu chorume.

Eis o curso da vida e sua costura
Num viés de mentira e de verdade
Vestindo consistente no seu traje
Ultrajes desesperos agonias
Um rol de horrores preso na lapela
Enfeite que envergonha a fina grife.

Vestir um rio é como se despir
Na entrega despojada da paixão:
Nada se esconde e tudo se oferece
Pelo instante do sonho revelado
No mistério gozoso desmedido
Onde só há lugar para a palavra.

Dois ciclos a reger quatro estações
Comandam esse rio de vida e morte
Porque não só do humano reza o reino
Refém da natureza e seus fenômenos:
Terras caídas águas na vazante
Marés crescentes várzeas alagadas.

O que aparece em dor tão aparente
Nem sempre é o componente que maltrata.
Por vezes muita perda não se enxerga
Porque nem o que a guarda sabe olhar
Embora sinta os pássaros cinzentos
Bicando lá no fundo algas viscosas.

Ah, mágoas do silêncio com seus gumes!
Peixes das sombras de escamas afiadas
Quedam-se cegos diante dos rochedos
E mesmo assim não se soltam dos signos
Mas prendem-se em tarrafas solitárias
Como se únicas presas dessas malhas.

O rio que mora em mim tem caudatário
Braços pequenos riachos soluçantes
De água escura ocultando insegurança
Dessa frágil fronteira limitada
Que não se quer sabida pelos outros:
Temores e fraquezas densas dúvidas.

Fui aos longes da infância atrás de ausentes
Levado pela paz de uma saudade
Vivida no circuito da família
Em muito igual a muitas por aí
Que ensinam na primeira convivência
A crença do homem múltiplo de si.

E multifacetário mostra máscaras
Tatuagens tomadas ao acaso
Em cena aberta sem qualquer decoro
Não sabendo o papel em seu disfarce
De apresentar a dúvida vestindo
As várias personagens nesse enredo.

Ah densa dubiedade tão presente!
Anúncio previsível e olvidado
Porque fracassos de outros não se somam
Aos nossos de vivência não havida
Porquanto a dor é única ao senti-la
E cada corpo hospeda um terno algoz.

Águas serenas hoje me socorrem
Na fala desse afago que me lava
Nessa ablução sem culpa em que preparo
A presta travessia inevitável
Sem antes convocar minhas lembranças
Filtradas num decurso em claridade.

Agora só me resta a calma espera
Nos ossos do silêncio se atritando
Porque ouvir é preciso mais que a fala
Da surda voz marinha adormecida:
Ondas de folhas - verde cemitério
Em que menor me afogo em mar maiúsculo.

A PALAVRA POTÁVEL
para Affonso Romano de Sant'Anna

E foi assim que não querendo fui
no arremesso do olhar de línguas
de muitos poetas lidos e
inventados vistos e vividos
Assim
eu vi o que vi
a EZ imagem gemendo a gema
viva
de pó e lavra e roca
a fiar um rio de lavas
um rio de estrias
e nerveruas
frias
um rio de po ro
ro cas
A PoLAVRA PaTÁVEL
Um carro rola
solfelino
salferino
solemar
salamargo
imarcescível
para um homem navegar
há sempre um copo de mar
and ready words made work
maralho
marolho
marilha
marelho
marulho
No Brorfeu de Jorge
um carro rola
NO NÃO SENTIDO SINTO
O DADO SENSO DADO
NONADA SENDO SENSO
NONÃO SENSATO NATO
um carro rola um carro rola um carro rola
atropelando livros:
Lio-os anagramando o país das maravilhas
no banzo negro yorubá nagô
banzeiro caldeado e um marco zero
e um pólo marco em Macunaíma e Mário em
pés de agulha fina retorcido curupira
e

s
a
c
i
E seu acento circunflexo vermelho
pousado sobre o cocuruto
dançando com vírgula bailarina
enquanto uma perna acorda estrelas
e a outra que não se vê
fincada em alguma porteira
aberta para o galope
dessa palavra-cavalo-de-coices
que se acalma quando monta
égua xucra
na campina do poema
égua doce
banhando seu potro
na
PaLAVRA PoTÁVEL
Essa égua xucra nos cavalga e é cavalgada, puta
canonizada por Sabines, lambida pela língua langorasa
de Drummond, engaiolada na crueldade da jaula
poundiana, a que desceu selvaggia na selva de fogo
dantesca, a que todos os dias dava lições de partir em
bandeiras manuelinas, a que passeava fingindo não ser
vista por pessoas pelas ruas do Chiado, a do beijo
seguido e antecipado pelo escarro, cuspidas por mãos
que afagam e apedrejam augustos momentos; a de vôos
passarinhos, pequeninho beija-flor, mas nunca passarão
como aquela alma minha que partiu e acabou no barro
pantaneiro de um novo barroco Manoel enviando
cordas de violas de cocho para Stevens encordoar
a guitarra azul.

Essa arte inútil serve para quê mesmo?
Para cair no redemoinho vital para dizer e denunciar
disse-o, um dia, o poeta-cidadão Lindolf Bel, o
Ievtuchenko de Santa Catarina e dos happenings do
Viaduto do Chá, me segreda o poeta de Barcelona-
Borborema, enquanto outro, editava um estatuto
burocrático com um olho em Platão e o outro na
república (da qual um dia fomos expulsos) e mais um
completamente sujo tangia sua loucura escatológica
dentro de uma noite veloz.
É, somos mesmos 999.999.999
gigolôs do ócio
na tabuada affonsina
a perguntar:
“Que poema é este?”


CARTILHA DE SINAIS

(EXCERTOS)

Dois Pontos

No meu caminho
dou de encontro

com :

tisnados em paralelas
à espera da sentença
dialogando
com o chão

Essa conversa de pés
claudicante
tartamuda
gagueja
em tropeções
naquele que vem embaixo
rebatendo em eco
para o que está acima
pássaro preto
no telhado azul

Pelo vão desses :

de cabeça me arremesso
aventura em travessão
no sonho que não se quer
linha reta
horizontal

O . de cima leva sonhos
Epifania
O . de baixo lavra a pedra
Epitáfio

O Ponto

De ponta a ponta me aponta um .
no apronto da escritura.
Seguido ou final
há de se entretê-lo
nos cascos do poema
cavalo passado do passo ao trote
e
ao
solto
ga
lo
pe

Na senda
branca:
meu desafio.
Fio em que meu ato
desata desatentos pontos
de vista
nem sempre convergentes.

Às vezes o . é pedra subindo ladeira
para depois rolar ladeira abaixo
e novamente subir ladeira acima.
Outras, o . empaca teimoso
asno turrão
no meio do caminho
no meio da selva selvagem.
Gosto
em especial
do . rolado
no verde relvado
dos campos de futebol:
no . como na bola
– sua pareceira –
há que saber parar
para fazer o gol.

A Vírgula

para o poeta Margarito Cuéllar

Desde sempre
– para embalar meus passos –
carrego comigo uma vírgula.
Uma , que é um feto
sempre pronta a abortar
na gravidez de meus versos.
Às vezes mostra-se abutre
nos seus vôos espirais:
um redemoinho doce e gelado
como sorvete em cascalho
vendido nas ruas,
pedinchona como os olhos de meninos;
outras, caçadora de andorinhas arribadas
no solstício do verão:
um gavião que sabe de curvas e
das esquinas do vento.

Por dever de fato e de direito
faz-se urgente que confesse:
gosto mais da , bailarina,
que dança no compasso da lua crescente
– sua prima-irmã –
e conhece as solas das nuvens viageiras.

Reticências

Páro
diante da nudez do rumo
dorsal me curvo
espinha por 3 vezes
com uma viseira de antolhos
espio a fala do Outro
antes da primeira pedra
lanço-me em 3 pulos
nunca em cima do muro
senão a pausa
o esgar pontuando o cáustico
sorriso
se voam da voz as ...
nuvens
nomeiam-na
CUMULUS
e a chuva
lava a relva e
vai
e
leva
e é só silêncio
se me rendo à tinta
retrai-se ao peso
a mão taciturna
pousada
ave emplumada
as ...
no lago gelado
se vão
CISNES
na pauta que podia ter sido valsa ...

ANIBAL BEÇA – O poeta, compositor e jornalista amazonense Anibal Beça já atou como repórter, redator, colunista, copy-desk e editor, em todas as redações dos jornais de Manaus e é especialista em tecnologia educacional na área de Comunicação Social (UFRJ). Foi diretor de produção da Televisão Educativa do Amazonas - TVE. Atualmente é consultor da Secretaria de Cultura e Turismo do Amazonas. Idealizador e Editor-geral do suplemento literário "O Muhra", de circulação bimestral, editado pela referida secretaria. Foi o único artista amazonense a se classificar e se apresentar no Festival Internacional da Canção FIC, em 1970, com a música "Lundu do Terreiro de Fogo", defendida pela cantora Ângela Maria. Tem músicas gravadas por vários artistas brasileiros como: Ângela Maria, As Gatas, Coral JOAB, Felicidade Suzy, Nilson Chaves, Eudes Fraga, Lucinha Cabral, Dominguinhos do Estácio; Bira Hawaí, Aroldo Melodia, Jander, Raízes Caboclas, Mureru, Roberto Dibo, Célio Cruz, Arlindo Junior, Paulo Onça, Paulo André Barata, Almino Henrique, Pedrinho Cavalero, Pedro Callado, Delço Taynara, Grupo Tymbre e outros. Seu primeiro livro Convite Frugal, foi lançado em 1966. Publicou em 1994, o livro Suíte para os Habitantes da Noite, quando foi vencedor do 6º Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira - categoria poesia. Outros SOS seus livros: Filhos da Várzea, ed. Madrugada, 1984, abrigando o livro Hora Nua; Marupiara - Antologia de Novos Poetas do Amazonas, (organizador) Ed. Governo do Estado do Amazonas, 1985; Quem foi ao vento, perdeu o assento (Teatro) Ed. SEMEC, 1986; Itinerário Poético da Noite Desmedida à Mínima Fratura, Ed. Madrugada, 1987; Banda da Asa - poesia reunida, Ed. Sette Letras, 1998; contendo o livro inédito Ter/na colheita. Anibal ainda é Membro da UBE , União Brasileira de Escritores, do Coletivo Gens da Selva (ONG) e do Clube da Madrugada, entidade instauradora dos movimentos renovadores no campo literário e artístico do Amazonas.

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