sábado, outubro 25, 2008
POETAS DE GOIÁS
ANGÉLICA TORRES LIMA
DIAS CONTADOS
O poema da morte
é apenas um trovão
assustando a vida:
olhos se arregalando
estampidos nos ouvidos.
Melhor, talvez, chamar o medo
de expectativa
já que nessa estrada
não há outro desvio.
Dias contados.
Descontados os feriados
e dias profanos,
resta-me o dom de fabricar
o meu destino,
refazendo os planos
perdoando os erros
e os danos,
dando remo e rumo
às mãos
e ao pleno.
Contados os dias
em letras,
os números letais
se abrem
ao infinito.
Disfarço
a farsa, pondo fé
e desfaço, acho,
o carma da morte
no imposto da vida.
ENTARDESCENDO
A tarde não se olhou no espelho.
Sabia que a beleza aquele dia
era artefato insubmisso
a Miguel e Luzefel
E fez-se mel no crepúsculo
resplandecência, esmero.
Vestiu-se epifania no facho azulado
e nos raios dourados do sol
sobre os cabelos.
NAMORO COM OS PATOS
Queria te levar comigo, marreco
mas no Brasil estrangeiro serias.
Estranharias talvez o calor
o abandono do povo
irias te sentir perdido.
Saudades do Lago Monona terias;
do jogging, do footing
no cais do Mendota, tu chorarias.
É melhor te guardar a lembrança
nesta poesia.
MULHERES
Neste início de tarde
fim de manhã do verão
o sol me divide
nas várias mulheres
que me antecederam
e nas que virão
grávidas de luas
na fase obscura
com um abismo
no peito
ANOITECEU
Os homens inauguram-se bruscos
como monumentos.
Toscas palavras de sal.
Dormem secas as cascas
lacrimais da madrugada
desvirginada por galos e cães
Em geometria abismal
bebem as torrentes
do sono aceso.
E o sangue foge
para um campo
vazio e sem lamas,
enquanto a Via Láctea
espreita
o leite latino
da transmutação
GRANADA NO PEITO
Estaria eu melhor
se estivesses aqui comigo
neste Café, onde Lorca
se sentava
ao sol morno de dezembro
entre os pássaros
e pombos da praça
com o peito em chamas
os olhos inflamados
o incerto destino dos sós
O POEMA QUER SER ÚTIL
O poema quer ser útil
ao mobiliário
da noite solitária
nesta casa.
Pergunto à Musa, respeitosamente:
— Compaixão?
Ou inveja desta
acre-doce amarga
solidão?
HAICAI
Tomara que caia
um haicai
na tua saia.
AO NAVEGANTE
Desveste o coração
das plumas e dos pesos
da existência
Deste portal em diante
só existem paisagens:
os riscos esboçados
dos pórticos do olhar
Neles não cabe ciência,
sequer filosofia,
mas o simples gozo
de vagar
FAZENDA DOIS IRMÃOS
no casamento
da árvore com a terra
a minha crença na vida
na sua sobrevivência
sem cuidados humanos
a reverência
aos elementos
no seu crescimento para o alto
serenamente imponente
o ensinamento vivo
de u`a meta
e um comportamento
no trabalho das raízese
e no vôo das folhas
a compreensão
de que aos pés deu-se o chão
a mente o infinito
no gosto do fruto
presença de água e mel
drink ligeiro dos pássaros
cheiro de infância
na minha saudade
Olhar léguas e mais léguas verdes
cercanias de matas, vento
cantando baixinho
no ouvido, na fazenda
da miaha infância
Tanto verde em redor do Morro Alto
lado a lado no topo
dois bambuzais solitários
irmãos companheiros
No céu rastos vermelhos
restos de sol
No ar o cheiro do mato
a transparência da noite invadindo
No centro do reino verde
o cavalo e eu
a descer a calmaria
da velha natureza
lentamente
O som do trotar de Cacique
nas pedras friinhas
u`a melodia pura
os meus desejos ocultos
os sonhos puros de criança
riquezas simples da infância
Sensação de cria da terra
de filha do vento
Impressão de ser folha
de ser mato
Certeza de ter brotado
de solo fértil
feito flor
Ah, os campos, os pastos
os córregos de água fresquinha
o curral, a casa grande, o quintal
a goiabeira perto da bica
o milharal e as jaboticabeiras
o prazer de beber com as mãos em concha
a água pura da cacimba
No parque das altas mangueiras
perto do córrego sombrio
a morada sagrada
das fadas, gnomos, duendes, sacis
o meu recanto predileto
repleto de mistério amigo
onde os sonhos conversavam comigo
E eu a comer cajamanga
verde, azedo, com sal, contemplando
a beleza rústica do engenho
cana, garapa, rapadura
A casa do vaqueiro
escondia em mim eu mesma:
ela era o cenário imaginário
de minhas estórias
de príncipes e princesas
No jardim da casa-grande
as rosas e os cravos
por meu pai cultivados
com tanto amor
Na escadaria dos fundos
a vista do Morro Alto
com os bambuzais irmãos
e o requeijão quente
da Lucinda, tentando a gente
Da varanda, a beleza vermeLha dos
enormes flamboaiãs, o curral do gado tratado
o leite gostoso, na hora tirado
Na janela do meu quarto
tinha sempre visita de um colibri
Não muito longe, no riacho
o ensaio dos sapos para a noturna sinfonia
Ah, fazenda querida
bordei você na lembrança
como foram no céu as estrelas bordadas
nas suas noites de verão
Guardei você, eom cuidado,
no pór do sol de Goiás
pra que todo dia sua presença reviva
e eu a enterre imortal
dentro de mim
ANGÉLICA TORRES LIMA – a poeta goiana Angélica Torres Lima cursou Arquitetura e Urbanismo na Universidade de Brasília (UnB) e Direção e Cenografia em Artes Cênicas, na Fefieg (atual Unirio). Formou-se em Comunicação pela UnB e especializou-se em edição de livros e periódicos pela Universidade de Wisconsin (EUA). Trabalhou em diversos jornais, geralmente em editorias de cultura. Publicou Sindicato de Estudantes (1986), pelo qual recebeu o Prêmio Mário Quintana de Poesia, do Sindicato dos Escritores de Brasília, e Solares (poesias, 1988), com o grupo Bric a Brac. É autora do texto de Koikwa, Um Buraco no Céu (Editora UnB, 1999). Autora dos livros de poesia Paleolírica (Brasília: Alô Comunicação, 1999) e O Poema quer ser Útil (Editora LGE,2006). Atualmente exerce a profissão de Jornalista em Brasília.
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