terça-feira, março 31, 2009

POETAS ALAGOANOS



CICERO MELO

MATER LUDICA

Mergulhemos, menino, mergulhemos
Neste rio Mundaú, entre as pedras.
A Pedra de Bico e a do Afogado engolem,
Puxam nossos cabelos como uma sereia,
E nadamos no escuro das águas da vida,
Até chegar à confortável margem
E descansar nas coxas nuas e roliças
De nossas mães sonolentas e nossa imagem.

As coxas das mães nos dão retorno
Ao antigo rio no seio se compondo.
Para aquela misteriosa porta da vida,
Com que sempre sonhamos, quando
Saímos daquelas águas de pele macia
Para as águas dilaceradas pelos ventos,
E nossas mães nos aqueciam os dedos
No mais sagrados dos seus aposentos.

De minha mãe ainda guardo o cheiro antigo.
Quando chove e há relâmpagos e trovões.
Enrolo-me dos pés até a cabeça e sinto
O seu braço macio afugentando o medo.
A sua perna grossa sobre o meu corpo,
O regaço dos seus seios, cheios e fartos
Me faziam sonhar em outros rios, quando
Crescido retornasse, aventureiro, ás águas.

Era a recompensa por ter vindo de um sonho
Dela sozinha, pois os sonhos se dividem.
Nenhum homem a conheceu, nem um anjo,
Como acontece nas antigas escrituras.
Nenhum deus a tocou, já que partiram.
Nenhum homem a tocou, pois estão mortos.
Foi numa noite qualquer em que chovia
Que minha mãe sonhava e eu nascia,

Mas era tudo a semente das águas do rio
Em que nos banhávamos como peixes, nus,
Sem as escamas cortantes doutros peixes.
Minha mãe tinha a pele macia e tão suave
Que até chorava umas estranhas lágrimas
Que descia do seio em amoroso enfarto.
E chorava, menino, rápido, que a secasse
Com a minha língua infantil de um lagarto,

ENQUANTO ACORDAS...

Chove na moldura do tempo.
Quem ergueu a mão para criá-la?
As cortinas abraçam o vento
Um deus adormece na sala.
Um coração sempre se cala
perante a paisagem esquiva.
E a curva dos ventos abala
os caminhos da chuva viva.
A sede do deus trás a chuva.
O vento remove seus limites
de corpo colado à moldura.
Mas que desdém de chuva morta!
Um deus azul quer que o imites.
Desculpe: bateram à porta.

A PRIMEIRA FALA

E assim descobrimos o ponto morto
Do tempo ilhado em curvas e negro uivo.
Não há nada ordenado, tudo esboço.
Só a serpente espreita-se no escuro.
Nasceu uma mulher dessa cabala,
Desta mesma matéria que nos molda.
Detinha sua boca a voz sagrada
E proibida, mas de inversa roda
Gritou aos céus o nome que, falado,
Pode acordar o deus nunca desperto,
Toda sua crueldade e seu reinado.
Deram-lhe a solidão, o fecho eterno.
Decomposta em si mesmo, o ser danado
Abre o céu da serpente e nosso inferno

Abre céu do vácuo e a pele inexistente,
Do ser embrionário inda menino
Na moldura viscosa da serpente.
Doce abandono cego e sem destino.
Por ora, reina o fogo na montanha
Das águas que proferem a sentença
Ao deus insepulto em ova estranha
E no sêmen futuro da descrença.
Água seca, palavra seca e sede,
Vagina infantil, cloaca enorme,
É mãe sinistra que desenha a rede.
Neste momento incolor da água informe,
Uma muralha de luz uma parede,
Não deixa despertar o deus que dorme.

Um deus dorme, portanto, neste vinho,
Nesta paisagem, folhas e maduro
Fruto caído sobre o solo impuro.
A produção primeira, o casto linho.
O verme baixo a terra enlameada,
Na textura do tempo, na semente,
Sopro primeiro sobre o solo ardente,
Se transforma nas curvas desta estrada
Em que destilas o vinho do teu rosto,
Em que sobes do sonho para a vida.
E na escada subindo ou na descida,
A cada passo errado estás deposto.
O fundo é mais distante, velho amigo,
Se nem um deus de sombra andar contigo.

A ESFINGE

Se não te sinto luz, onde a candura
Das palavras bem ditas, bem formadas?
Nas minhas mãos, por ora, vejo estradas
Em traçados de cega agrimensura,

Se não te vivo em mim, vivo a loucura
Das palavras de amor incendiadas,
As taças da paixão dilaceradas
Na bacanal de sangue e de ternura.

Amor, amado amor, amargo amor,
Como dilacerar os teus mistérios,
Que me transluzem sonhos em torpor?

É muito tarde, meu amor impuro.
O sol já ilumina os cemitérios.
Voltarei amanhã, me crê, eu juro.

A TERCEIRA PELE

Procuro a carne da palavra adusta,
Aquela que insorvida se consome,
Aquela cujo selo cai à fronte
Das palavras irmãs e se incrusta
Nas pedras da razão, no verbo nômade,
No dedilhar de febres e de angústias,
No delírio senil da sombra rústica,
Longa noite de sal e medo insone.
Procuro a carne da palavra augusta,
Aquela que se eleve e se prolongue
Em mistério sutil, sedosa e onde
Repouse mar, celebração e bússola.
Procuro a carne da palavra morta
Que se aviva, me bate e me conforta.

A PRIMEIRA CANÇÃO DE CAIM

Vendo em mim mesmo o meu contrário,
Erguer-me as armas como um serafim.
Cansado do combate, agora agrário,
Revestindo de sangue meu jardim,
Só quero o dormir dos condenados,
Em terra escura, junto ao pó do irmão.
Apagados desta terra e vindimados
Por uma mão tirana e sem paixão.

Ainda nem dormira a minha espada
Do sangue dos que ferem minha casa
Quando uma voz descendo de uma escada
De sangue cintilante e voz em brasa
De pombos afogados me recordam
Os ossos dos meus medos. Meu irmão
Com rendeiras do tempo já me bordam
Coleante e sem sombras pelo chão.

Desperto o pesadelo, em nuvem vejo
Leviatã ascendendo desonesto,
E sempre escondido no desejo
Da eterna maré do grande incesto
Entre deuses e homens sob vinho.
E vomita curvas e nos afasta
Em separados orbes e torvelinho
Do tempo que assassina e nos arrasta.

Combato Leviatã no labirinto,
Recantos tortos desta escura guerra.
Até que um sol de fogo, fel e absinto
Com o sangue de Elias queime a Terra.

O VASO QUEBRADO

Tenho dentro de mim todas as mortes
e as lembranças em taças infinitas
se contorcem em sais e faces tortas,
entre sombras vinagres e vinditas.
As lembranças em laços se confortam
como anéis absurdos e insalubres.
Sangra o corte na tela decomposta,
estilhaços de mênstruo e mátrios úberes
Uma carga de morte em mim aborta
o dissoluto branco em pele negra
que, reflexo invisível, se dissolve
sem consorte, sem vórtice, sem espelho,
na paisagem proscrita do passado,
no tambor de um mundo condenado.

DAS NAVEGAÇÕES DO NOVO

I

Façamo-nos ao mar, aventureiros,
Que muitos são os cabos a vergar,
E a vida renovada de janeiros
Não carece de portos a arribar,
Porque sendo das horas marinheiros,
Sempre reinventando nosso mar,
Multipliquemos a vela solitária,
Que a vida só vigora quando vária.

II

Renascendo das milhas percorridas,
Sempre metamorfose, sempre nave,
Sejamos das correntes incontidas
Que modulam o peixe em ática ave,
Que fazem vivas trilhas pressentidas,
Do mistério do mar forjando a chave.
Contornemos, marujos, vis abrolhos,
Redescobrindo o mundo em novos olhos.

III

Timoneiros de chusma inane, enerve,
Descrente no bailar dos dias vãos,
Sejamo-lhes o sopro, ativa verve,
Que desova de vida as mortas mãos,
Aquele que no corpo frágil ferve
Revestindo de sins os nulos nãos.
Façamos do cansado nauta em dor
As rotas desvendar, navegador.

IV

Não navegar jamais rota abatida,
Mas sempre aquela em feto, indesvendada;
Aquela que buscas vem tecida
No profundo do ser, imaculada;
Aquela no casulo, ova contida,
Semente do amanhã, desabrochada.
Decifremos os dias no seu ovo,
Que a vida se constrói de rumo novo.

V

Sempre em febre e furor a cada instante,
Sempre redefinindo o itinerário.
Em lugar diferente e bem distante
A nau esteja em cada aniversário,
Navegando sem bússola ou sextante,
Sem astrolábios ou mapa ou calendário.
Sorvamos do vagar toda ventura:
Que só nos baste o mar por sepultura.

VI

Que de vagar a barba se embranqueça
E os revoltos cabelos virem cãs;
Importa-nos o azul sobre a cabeça,
O vento desvestindo as trilhas vãs.
Que a mente solta ao léu se fortaleça,
Permute lassas tarde por manhãs.
Que sendo estas do nauta as sãs ciências:
Não nos cubram os céus de condolências.

VII

Que a mente se arquitete em móveis ilhas,
Fecunde-lhes a forma em geometria,
Desenhe-lhes a fauna, as maravilhas,
A flora matizada em melodia,
Os córregos mutantes, livres trilhas,
Paisagem aleatória que procria.
Que se desfaz a vida no profundo,
Se o nauta tem a nave fixa ao mundo.

VIII

Que não se busque o nauta em recompensas,
Nem em seu desbravar rude aventura,
Que o sempre navegar de rotas tensas
Perfaz-lhe a honra mor que só perdura,
Iluminando a mente às noites densas,
Levando sua luz à trilha escura.
Posto que de maior que seja o feito,
Procura sempre o vulgo a ver defeito.


IX

Não sorver dos relógios o destino
De decantar o tempo eternamente,
Mas desenhar no peito o rubro sino,
Aquele que desperta a chama à gente
Cigana, em passo errante e desatino
De caminhar estrada tão clemente,
Pois, se vivemos nave solta ao léu,
Que nos bastem os vivos sob o céu.

X

Mas que nunca nos faltem sentimentos
De amar sem pejo, pena ou compaixão.
Só nos enriquecemos dos momentos
Que nossa nau desdobra o Cabo Não
Do viver, que, com todos seus tormentos,
Insano nos arrasta em aluvião.
Sejamos sempre sol de vária cor,
Contudo, em nosso mar, navegador.

CICERO MELO O poeta, ensaísta e crítico alagoano Cicero Melo escreveu os livros "O Verbo Sitiado", "Poemas da Escuridão" e "O Poema da Danação". Participou de várias antologias. É formado em Administração pela PUC/RJ, possui o First Certificate of the Cambridge University (Cultura Inglesa) e proficiência em Francês pela UNICO. Tem inéditos os livros "Por que os Unicórnios são Ocos?" e a antologia “Se Tupã quiser”. Edita o blog PEQUENA REUNIÃO POÉTICA. Veja o que diz dele o escritor Paulo Gustavo: "O poeta Cícero Melo, alagoano radicado no Recife, é, sem favor algum, um dos fortes poetas em atividade em Pernambuco. Como genuíno artista da palavra, nada tem de vulgar, nada concede ao fácil. Com ele renova-se o nosso melhor lirismo — em imagens, em musicalidade, em domínio de técnica. Sob esse último aspecto, é visível seu gosto pela métrica e de extremo bom senso o uso do verso livre com o necessário rigor que este merece. Foi o que fez desde mais jovem para abrir clareiras à melopeia que permeia a sua poesia. Ler e reler a poesia desse poeta tão inteligente quanto avesso à chamada “vida literária” é um permanente prazer. Deixo com vocês duas amostras, dois fragmentos de seu livro Poemas da Escuridão, publicado em 2001 pelas Edições Bagaço, no Recife". E mais outros poemas do poeta selecionados pelo escritor:

(Quem é esse que traz os pés cativos
À sentença de acasos e de meses,
Vago morto que aprende com os vivos?
Quem é esse de sonhos insepulto?)
Me perguntaram e neguei três vezes
Que era eu mesmo pelo mundo oculto.


VÊNUS FURIOSA


A semente do amor rebenta a chama
E transita de novo o ser amado.
Ardor de mar sem foz, torpor alado.
Mas se Eros te foge, o amor reclama.
É sedosa a casa de quem ama
E sedento o jardim do seu cuidado.


MOLDURA


Desce rumo à infância
A morte despertada.
Pó e pesadelo
Nunca envelhecem.


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