segunda-feira, julho 14, 2008

POETAS DA BAHIA



HENRIQUE WAGNER

AS HORAS DO MUNDO

Deixo que o relógio insista.
O agora perdeu-se aqui.
Não esqueço minha memória.
Não insisto no meu fim.
Deixo que se vá agora
Todo o tamanho do fim.
Horas sendo as mesmas horas,
E tudo indo sem mim.
Deixo que o relógio insista,
Atrasado sempre, inútil,
Marcando as horas do mundo.

UM POEMA DE AMOR

Penso que, se já acordamos à mesma hora, sobre a mesma cama,
Tomamos o mesmo banho e sentimos os olhos arderem com a mesma marca de sabonete,
Sorvemos o doce café quentinho que nos tem o mesmo cheiro
E andamos nas ruas de mãos dadas formando uma única sombra,
Somos um único somos, temos um único peso no universo
E nossos corações tocam numa mesma banda percussiva.
Não nos vemos de costas e nem de frente,
E andamos pra frente e pra trás quando queremos.
Então sorrimos largamente porque jamais chegaremos aos 200 anos,
E não nos defrontaremos com os sustos de um futuro remoto,
Nossas dentaduras não cairão sobre os salões invisíveis.
Apenas uma infância, uma juventude, uma velhice:
Um beijo eternamente multiplicado, um corpo formado
De dois antigos corpos aluídos.

POESIA

Há um poema em algum lugar
Feito de espera e horizonte,
Feito de vela, e insone.
Há um poema a cada hora
Que se pensa no infinito
- pra cada hora um infinito.
Há um poema à toda noite
Na lâmpada acesa ou não,
Na folha branca ou na mão,
Bem como há um céu distante,
Estrelas por trás dos olhos,
Estrelas do mar adiante.

O HOMEM DECAPITADO

O pior homem é aquele que é poeta
E o pior poeta, aquele que publica.
Um poema é a autópsia da alma
E a poesia então se humaniza.
E o poema publicado
É o desfile do homem decapitado.
Um homem decapitado, mas com as dores
De um homem decapitado, vivo.

O PIANO

O piano de cauda não coube
No meu apartamento,
E minha tristeza, do tamanho de uma cidade,
Trouxe os rumores sorumbáticos
Dos becos de minha alma.
Por estar tão intrigado com o fato
De uma nota entrar e um piano não,
Dei gravidade ao silencio:
Soltei os pássaros da gaiola.

ITINERÁRIO DE UM POETA

Bela é a manhã quando não a acordamos,
E todo dia apenas desfaz-se a sua beleza
(e pensamos que é novo o dia).
Parece vir de longe trazendo a noite,
Pois mostra quase sempre os tons amarelecidos
Ou pontos negros de noites antigas.
Apoderaram-se delas os de insônia,
Os notívagos,
Os boêmios.
A noite solta-se a cada dia,
E sem que acordemo-la,
Bela é a manhã quando não nasce o dia.

O VATE

Preciso escolher logo as minhas botas,
Que tudo já está escolhido:
A cor do céu, lua ou sol,
Jeito, força, luz ou escuridão.
Como sei que não tenho direito
De ser exigente, farei um único pedido:
Quero um cavalo,
Para que a certeza seja breve.

O POEMA MORTO

O tempo é triste.
O que ele faz com os nossos pais.
Não. O que ele faz com os avós.
Por anos a humanidade se revoltou
Com a morte. E o tempo cura.
O tempo sara.
Não.
O tempo é que nos leva,
Não a morte. Talvez a morte
Tenha morrido há muito tempo
Engasgada, repleta de um fastio sangrento,
De uma indigestão inocente.
O que sobra e sempre sobrará
É o tempo. O tempo sem verbo
E sem apresentação:
A poesia do poema morto.

RESTOS

Semeio tempestades para colher folhas verdes
E diviso o sol cabisbaixo para sonhar na madrugada.
Com as cascas do abacaxi revigora-me o chá.
Com os restos da tua vida a minha saudade,
Se não eficiente, proficiente nos aproximar-me a ti.
Nos farelos do te alimento, o gosto de tua boca.
No final do beijo o sangue do batom
Que é sempre vermelho e sempre será.
Nos espaços que a chama criou
Ao devastar barreiras gigantes,
Construo o nosso ninho de folhas de passarinho,
Até que dure o ocaso, em que amando,
Eu possa fazer um filho.

TALVEZ AGRIDOCE

Porque estou ouvindo o som dos cajus crescendo
E porque as suas cores vão rompendo com a cor das velhas coisas,
Porque os sentidos têm me levado ao sentido de existir cheirando cada gota de lágrima vertida pelo meu amor,
Ou ao sentido de existir olhando
Passo a passo a saudade, essa distância que não se completa,
Porque os cajus já foram chupados pelas minhas narinas,
É que eu existo e tenho a mão
Para escrever minha alma nesta folha branca de madeira.

TENCOLOGIA DA MORTE

É tudo muito rápido
E fácil de entender:
Desejamos o futuro,
Buscamos o que não temos,
O que não temos é o punhal
Que nos atravessa invisivelmente
Feito um nailon cortante.
Lentamente o futuro nos esconde
Por trás do seu passado
- quando tudo o que queremos é estar dentro de alguma coisa.
Feito uma ave de rapina que voa alto
E de repente mergulha no chão,
Cravando as unhas em algum inútil movimento,
O futuro, em incontáveis segundos, nos mata.

A PRAÇA INTEIRA

Parece haver um espírito na praça.
Se ele existe é do tamanho da praça.
Todas as noites, o espírito
Deve deitar-se sobre a praça inteira,
Cobri-la com a sua vasta barba
E pedir esmolas
A Deus.

HENRIQUE WAGNER – O poeta e critico de literatura baiano, Henrique Wagner, é autor dos livros “As horas do mundo” e “A linguagem como estética do pensamento”. Os poemas recolhidos nesta seleção são do “As horas do mundo”, onde Anderson Braga Horta escreve: “(...) Em As horas do mundo saúdo as bodas da juventude com o poema. Em rigor, as núpcias de Henrique Wagner com a poesia realizaram-se antes, pelos quinze anos dele, sacramentadas pela publicação de seu primeiro livro. (...) louvar aquelas qualidades ditas juvenis cuja menção abre esta página, e que habita as páginas que se lhe seguem. Juventude madura, ou maturidade juvenil, como queiram, é o que se oferece no trabalho poético de Henrique Wagner. Apesar de sua pouca idade, é capaz de escrever poemas graves como “Nunca”, e, apesar dessa gravidade, é capaz de um lirismo não convencional como o de “Talvez agridoce”. (...) Há os que vivem mais intensamente, mais depressa que o comum dos mortais. Depois, quando precisa, o poeta suprime a experiência, supre-a com a intuição. E por vezes consegue fazer, de uma lacuna de Ersatz, uma obra-prima. Findem-se aqui essas caóticas considerações. Os poemas de Henrique Wagner estão à espera, com seu clamor de juventude”.

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