sábado, julho 05, 2008

PRIMEIRA REUNIÃO



Imagem: Soft Construction with Boiled Beans - Premonition of Civil War, 1936 (Philadelphia Museum of Art), do pintor e escultor surrealista espanhol Salvador Dali (1904-1989)

COÁGULOS, COÁGULOS

Eu canto porque o momento existe!” (Cecília Meirelles)

Luiz Alberto Machado

Era uma vez
Era uma vez
Era uma vez duas três vezes
Mais provável que nenhuma na inexistência do flagra do minuto preciso na minha vida inexata na hora em ponto!

Era uma vez
Era uma vez
Era uma vez duas três vezes
Mais provável que a justiça num pote encarcerada
Mais provável que a remissão da lágrima na face lavada!
Mais provável que nenhuma porque foi pingando na veia, escorrendo pela biqueira do peito, pela cumeeira dos sonhos evaporando desejos que findavam sangrando as ruínas do meu tempo!
Do meu tempo caótico
Do meu tempo patético
Do meu tempo dilacerado!

Eu escondo em meu peito as ruínas do meu tempo!
Esse tempo apoliptico, megalomaníaco, irrespirável, fantástico de horror. Cheio de pantins, frescuras, teréns, loucuras!´Feito uma semente num invólucro das possibilidades improváveis no meio de flâmulas matemáticas de signos secretos e farsantes e alusões absurdas!

Sou apenas dois braços de espera no suor redimido porque da morte já arrastei ferros e o mundo é apenas as minhas mãos enterradas no blusão, o sonho estiado e a alegria transferida para alhures.

Em meu peito não cabe o pacto da pátria desfeita a terra acumulada e o homem obliterado a sujar as mãos na carne da terra e na paixão dos limites jamais alcançados pela ambição dos sentidos enquanto a lama da boca sugere traduzir amor, a boca de aço sugere traduzir amor engolindo desejos, sugere traduzir amor debulhando prazeres como o se o desejo esganasse miragens e é verdade porque o coração quer dizer verdades ou meias e não sabe o que dizer diante dessa tragédia toda.

Em meu peito não cabem jamais as síndromes da China, dos afegãos, dos bancos e das cabeças!
Não cabem as claques de merda pros oligopólios em alcatéias transnacionais com seu delirium-tremens do consumo no meio de uma economia falida emergindo sobre o sangue dado como aquele da escravaria açucarocrata que adoçava e adoça a boca dos festeiros enquanto a minha dor desmedida, enquanto a minha dor comungada é repisada e vira graúda criando coágulos por todo o meu corpo! E que me esfolem e me esganem pelos metros profundos dos infernos dessa terra porque mesmo assim ainda continuo a erguer cantos sobre este mundo porque das torneiras citadinas jorram sangue inocente adubados nas terras perdidas por hectares infames que só afugentam quem dela vive e morre de fome no meio de outro sonho perdido na pulsação das turbinas e outra coisa com uma marcha escabrosa de botas que guardam o patrimônio dos ricos com lesões homicidas quando outro é o meio do meio-dia e a indigência e outras são as pastilhas de carbono e o frio asfixiante da febre.

Já nada é suportável neste tempo de lama e podridão e nada vale a pena e vale a pena tragar o hálito dos alicates grosseiros e compartilha da fome dos órfãos de El Salvador e da dor das mães da Praça de Mayo e dos flagelados da seca e da exclusão social do Brasil mundializado para furor inadimplente de assalariados e estornados das promessas não cumpridas de todas as políticas de mentira!

Avante pra onde? Já não mendigo a vida pelos infortúnios, mazelas, porqueiras nem a devoção cega das crenças mutiladas nem da vil matéria lânguida e escassa espremida no dia-a-dia sarcófago de totens de sempre e tabus de nada!

Eu vou com meu corpo cheio de holocaustos e cataclismos e o punhal da vida me avassala e maldigo a terra ficam as sombras vãs que atormentam minha sanidade e os meus desejos remendados na alegria mal-assada com os recheios fugazes que findam na dor, mas se a dor não traz nada, parafraseando Gregório, é porque enfim leva tudo e deixa a mão espalmada ao jugo da palmatória da vida!

Eu vou com a chuva que explode lá fora onde a cidade sustenta seus fantasmas que pulam nas praças ruas avenidas e becos e bares e vidas sem no entanto se furtarem a pelo menos aprumarem a vida dos seus fiéis lambe-botas enquanto eu me embriago na chuva coletando os segredos dos rios com sua correnteza mansa escondendo o alvoroço do fundo e tudo encharca o meu país enxaguando essa terra embebida de sangue e suor, enxertada de sangue e suor e se dana como uma pólvora guardada no peito com o mísero crepúsculo que traz a noite e a vida já se foi pela janela e só resta cigarro e bebida e a loucura de se embriagar engolindo a ocasião inteira!

Era uma vez
Era uma vez duas três vezes
Mais provável que nenhuma na sóbria ou na lúcida vontade de se perder na metafísica do espaço no meio da prismática reluzência da catarse e na carismática inocência da poesia úmida lavando a estatística do cansaço que só consegue seguir aonde vai dar dali pra diante no ignoto mudo da urdidura do vácuo.

Era uma vez
Era uma vez duas três vezes
Mais provável que nenhuma e sobre este mundo erguer cantos, sim! Em meu canto há minha maldição, eis o meu suor, a minha maldição: as lajes, a comunhão, o inusitado, o paradoxal, o álcool, o beijo molhado, o adeus, o agasalho, a mão meiga, a dor amedrontada, a culatra, a pulsação, o medo e a agonia. Assim me foi concedido.

© Luiz Alberto Machado. Direitos reservados.

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