quinta-feira, agosto 28, 2008

POETAS DE PERNAMBUCO



CELINA DE HOLANDA

NUMA TARDE EM QUE EU SOUBE DEUS
PORQUE NÃO ERA OS HOMENS


E quando o tempo deixou de ser a casa
Para ser o homem, de várias adesões,
Eu quis ter um coração que sabe
Duvidar de si sem impor condições
Na mesma fé em que São Paulo se orgulhava
Da fraqueza humana.
Nunca se tem a evidência da verdade
Do que acreditamos, assim
Não se peça motivos mas apenas
Representemos o que somos.
E não prevaleça a boa educação
Com seus preâmbulos
Quando o amor estiver, mãos na cabeça,
Ouvindo tiros que são as frias gotas
De amargas servidões.
A poesia não tenha a menor importância.
Que muitos estão cansados de Brasília, outros
De verem crianças prostitutas e há um porco
Solto nos alagados da infância.

INTERIOR DA CASA

Assim ela queria
A mulher de seu filho: comum,
Uma boa mulher comum.
Uma mulher a quem os dias
Não cansassem por serem iguais
Mas os fizesse claros e lavados.
Entrasse pela noite
O rosto levantado o passo igual
Entre as águas e o fogo aos seus
Cuidados.

POVO DE DEUS

Ouço o povo numeroso de Deus.
Vem dos mangues, cárceres
E morros.
O Recife pulsa
Pulso forte de aço, onde vivo.
À noite fecho a porta à beira-rio
Lama e carne indissolúveis.
Ouço as portas.
E o clamor do povo de Deus, abrindo-as.

TEMA DAS ÁGUAS

Quando as águas moveram
Sua lama rasteira
Sobre a rosa amada
Odiaram as águas.
Que nada sabem daqueles
Para quem a morte não é terrível
E a enchente é um hábito.
Não sabem
Desta força que toma uma por uma
A flor da mão dos homens
E os leva leves sobre as águas rápidas.

SOL MATINAL

Se minha filha cruzasse os braços
Quando vamos à praia
Levando esteiras, cigarros
O cãozinho e as crianças
Correndo em círculos, rolando
Não haveria como este
Outros dias de mar
Nem esse morno cansaço descansado
De lavar, arejar, estender nossas vidas
Cheirosa a pinheiro em seu sol matinal.

CONTRAPONDO

Conceição a que limpa, semeia
Faz picolé para um dos seus
Onze filhos vender
Meio-dia aos homens da Telebrás:
Usa palavras duras
Para esconder a compaixão
Sabe ditos (disfarçados dardos)
Um dos quais:
“filho de coruja não tem pai”, sempre
cai na ociosidade dos meus, ontem
feriu de morte a minha costumeira paz
cristã.

O GRANDE RIO

Enquanto a lavadeira mergulha
Cada roupa no rio, o vento
Como um suspiro
Enfunou-se num seio.
Em minha blusa o meu corpo é de água
E passeia um peixe (alegria de prata)
No meu coração. Depois
Eu me perco no rio e tua sede me toma.

DE(S)ENCONTRO

Sobre esta cidade de rios
Como nos encontraremos
Uma diurna e outra noturna
Sem o sacrifício da manhã?
E o amanhecer
É como a infância, onde
Outro já trabalhou: o leiteiro
Ou o seio
Que nos amamentou.

POR TANTAS PORTAS QUE ABRIRAM

Por tantas portas que abriram
À força e na fraqueza da palha
Depois feixe; pelo que vimos
E ouvimos, pelo povo,
Quero meu corpo ajoelhado
O sopro de Deus em meus cabelos
Pesados de esperança e de mormaço.
Quero ser abençoada
Sufocada de suor e sinos, fiel ao dia
E não ao calendário.

COLCHA DE RETALHOS

No chão da casa depositei as malas
E me sobraram braços
(meu nome
perdido em sua voz, não me chamava)
era a noite onde as coisas terminam
a interminável.
Agora
Setecentos e vinte e seis dias depois,
Um ar de chuva atravessando o rio,
Sento na maquina e recomeço a vida,
Só retalhos.

EU LHE FAZIA SOMBRA

Era um brilhante dia
Branco e havia
A consciência de que
Eu lhe fazia sombra.
Parada, no chão magoado
Eu via o sol
Vivo e razante como um passaro
A desfazer as coisas
Desoladas.

CELINA DE HOLANDA – a poeta e jornalista pernambucana Celina de Holanda (1915-1999), publicou seus trabalhos no Diario de Pernambuco e no Jornal do Commercio e participou de varias coletâneas e antologias poéticas. Ela publicou os livros O Espelho e a Rosa (1970); A Mão Extrema (1976); Sobre Esta Cidade de Rios (1979); Roda D'água (1981); As Viagens (1984); Pantorra, o Engenho (1990); Viagens Gerais, de 1985, coletânea dos livros anteriores e mais os inéditos "Afogo e Faca" e "Tarefas de Ninguém".

FONTE:
HOLANDA, Celina de. Sobre esta cidade de rios. Recife: Pirata, 1979.

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