sexta-feira, fevereiro 29, 2008

PRIMEIRA REUNIÃO



Imagem: Pôr do sol em Palmares, Luiz Alberto Machado.

CANTANDO ÀS MARGENS DO UNA
Para Tininho (memória) & Santa

Luiz Alberto Machado

Estou aqui à margem do mundo e dos sentidos
No meio de um verso anímico de Celina Holanda que pousa na varanda do meu peito
Estou aqui com todas as dores do mundo na varanda da alma no meio do vento que vem do Una no horizonte da tarde de junho no sol de câncer
Estou aqui com a cara pra vida sem relógio ou ampulheta, alumbrado ou quase com as palmeiras das rotas crepusculares que sou eu incólume sempre no coração
Estou aqui com a folia das crianças que sobem as côncavas e íngremes tardes de Santo Antonio para mirar no cruzeiro toda longitude do tapete mágico e a anatomia selvagem da cidade escrava do pó da cana e da mata
Estou aqui como se estivesse no meio dos pantanais da sorte onde a caiana me dá o troco da vida açucarada quando o sangue é suor que lava o corpo nos espelhos anis suspensos que o bueiro da usina toca.
Estou aqui na fumaça que sai com a nódoa execrável da calda como um golpe estrondoso na gengiva do Una e envenena a minha e todas as vidas daqui.
Estou aqui onde o verde é o muro e coisa alguma no luar da mata no espaço vazio implacável no pardo olhar que se perde na vigília das abusões dos morcegos da vida provinciana.
Estou aqui onde os sonhos escapam pelas brechas das casas alcançando o azul com promessas de sopa, xerém, pé-de-porco, mão-de-vaca, carne-de-sol, feijão verde e fome das sedes de sempre.
Estou aqui no mormaço com seus timbres suaves instaurados pelo sol dos ambulantes de deus que vivem na sesta contumaz, piongos insones debruçados sobre os sonhos de catavento.
Estou aqui e percebo a fuga que aduba a moldura da fatalidade presente porque pelas ruas da minha cidade eu vou voluntariamente vivo e às vezes fujo num vôo que se despenca da minha liberdade e só muito depois volto para minha cidade tapando os ouvidos, mãos na cabeça, peito aberto.
Estou aqui sem flores nem presentes, só com meu riso anêmico e o meu aceno de já voltei e voltarei sempre que puder só com meu gesto telúrico, pálin!
Estou aqui me certificando das promessas que rangem na guilhotina do tempo, furando o alambrado do poder quando meu olho cheio de graxa e óleo vem de São Bento e desce para a Várzea de São José com a cerca grande no Rio Formoso para limpar a sina, o lodo e a podridão.
Estou aqui neste espaço que é o descaso dos homens de nada, maiores que nada, menores que o próprio tamanho e que não sabem a voz pra cantar que lá vem um verso lá da banda de Barreiros, lá onde o vento faz a curva pra voltar. O vento traz Odete Vasconcelos, Odete, oh, Odete pr´eu poder admirar sua negrice, seu amor de companheira porque odeteme sonho, odeteamo, noitedia luzear por isso eu só queria tocar violoncelo para no meio um de improviso noite Bach das sinfonias de bar fazer um preludinho pra Odente Vasconcelos.
Estou aqui sem relógio ou ampulheta, alumbrado ou quase, curtindo as paragens do assobio imenso do Una a me dizer hermilamente: “Você só não vê a alma porque está escondida”.

© Luiz Alberto Machado. Direitos reservados.In: Primeira Reunião. Recife: Bagaço, 1992.

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