terça-feira, setembro 02, 2008

POETAS DE SÃO PAULO



ROGERIO NOIA DA CRUZ

CURRICULUM VITAE

Eu posso lixar as paredes da tua casa
E pintá-las com as cores dos teus olhos;
Tambem faço limpeza, mato baratas,
Encero moveis e lavo tapetes.
Sou especialista em cozinhar o que gostas,
Sei, inclusive, fazer doces, peixes e tortas;
Posso passar óleo nas fechaduras das portas
Consertar chuveiros
E fazer o que não fazes no teu ócio.
Posso ser despertador e te acordar
Nas horas impróprias do teu levantar;
Ouso fazer serviço de encanador
E curar teus canos obstruídos.
Cuidar de teu jardim? Também posso!
As horas extras não cobro
E é quando posso
Dar-te beijos, aos lampejos;
Trepar, fazer amor...
Que mais queres? Eu faço.
Ah, o meu salário?
Vez em quando um colo
E, se possível, um abraço.

LEGADO

Estou criando a historia de um poeta
Quando crio a historia de mim mesmo,
Sabendo que não sou mera quimera
Mas a metamorfose do que era esteio.
E o mundo carece de poesia
Como carece do ar, do trabalho e do enlevo
De buscar-se numa arte sem escombros
Mas, que o faça, na fumaça, menos feio.
Não ao estético, pois disto desconfio,
Mas ao fio que liga um ser ao outro,
Que o bastante, neste mundo, é o desafio
De saber-se grande, nunca jaz ou morto.
E, quando crio, crio porque confio
Que, mesmo sendo a vida mar bravio,
A poesia, mais que navio,
Nos leva a seguro porto.

TRES FACES

Há três faces na tua face;
Uma que ama e sempre cala,
Uma que se cala em prece,
E outra que falseia a fala.
A primeira teme a si,
A segunda a um deus insano,
E a terceira se divide
Entre o divino e o profano.
Saber qual delas amo
Não é tarefa tão fácil,
Pois, se creio numa delas,
A outra logo se instala,
Deixando dúbio o desejo
De aceitar ou recriá-la.

CANÇÃO PARA OS AMIGOS

Meu amigo não é, são!
São esses meninos
Que choram comigo,
Que cantam meu canto,
Que riem da vida,
Que brincam, crianças.
Meu amigo não se vêem,
Tem a face mutante,
Tem a forma do mundo
E mesmo não sendo,
São únicos.
Meu amigo são esses homens,
Que ainda se lembram
Como se divide o lanche do recreio
E acreditam na estrada que os pés tateiam.
Meu amigo são esses,
Que mesmo distantes,
Estendem suas mãos,
Na hora do tombo.
Meu amigo habitam comigo
E nunca se escondem do risco corrido;
Meu amigo brigam
Insanos, mas conscientes
Do que foram, mesmo antes
Do fato vivido.

GERAÇÕES

... eram seis olhos
Cortando a sala pelo avesso:
Dois passados,
Dois presentes,
Dois futuros.
Todos únicos,
Todos vivos e ávidos
De saberem-se....
Eram seis olhos
Olhando-se obtusos,
Mudos,
Mesmo com tanta fala.
Eram três faces,
Eram três fazes
- madura, estática, confusa –
Que careciam se olhar.

RETRATO

Às vezes, minha casa
Tem gosto de domingo.
Há frango, macarrão,
Pessoas sorrindo...
Embora na moldura
Do retrato antigo,
Uma dia estiveram comigo.

SONETO INTIMO

Porque teu rosto despertou meu intimo,
Quando me habitava apenas o medo,
Deixei-me conduzir pelo teu ritmo
E ser transparente aos teus segredos;
De certo que há mistério em teu caminho;
Porém, sonhar-te junto, passo a passo,
Dá-me a coragem de homem, sendo um niño
E a pureza de um niño, sendo um macho.
Seguir teu rumo, então, será minha sina,
Mesmo sabendo que haverá momentos
De andarmos sós, a esmo, pelo espaço.
Mas, haverá também a minha rima
A fazer tu te sentires menina
E a minha língua a te causar espasmos.

SETE POEMAS DE REFLEXÃO

I
Que importa
Se é dia, se é noite,
Se levanto ou se tombo?
O açoite bate,
Incessante, sobre o lombo:
Sou escravo de novo!

IV
Pus meu coração
Entre tuas coxas:
Gozaste de meu enfarto.

SONETO DE ADORAÇÃO

Arrisco, louco, um beijo sobre tua imagem
Altarizada em minha falha crena
De ser, teu vulto, uma deusa em miragem
Surgida em meio de saudade imensa.
E te idolatro, delirante, feito
Um andarilho solitário e errante,
Buscando mais curar a dor do peito
Que saciar a sede do que lhe consome.
Pois é mais que água ao viajante sedento
E minha vida um deserto sem oásis;
Prefiro então suprir0me de coragem,
Para lançar-me no teu mundo adentro,
Buscando sempre a ti, mesmo que morte,
A fugir e viver tão descontente.

OSSOS DO ÓCIO

Há indícios
De que a falta de oficio
O levou para o ócio.
Há resquícios
De que também ao vicio.

ROGÉRIO NOIA DA CRUZ – o poeta e compositor paulista Rogério Noia da Cruz, cursou Letras na PUC-SP, fundou e presidiu o Grupo Artistico e Cultural Vinicius de Moraes e tem como parceiros musicais Pedro Paulo Zavagli, Paulo Muniz, dentre outros. É autor dos livros Fato-ato feito (1982), Circulo Continuo (1984), Poeta e poesia (1990) e Vida versada em samba e soneto (2003). Este último, traz capa de Elifas Andreato, apresentação de Milton de Godoy Campos e nota de Beth Carvalho.

Fonte:
CRUZ, Rogerio Noia. Vida versada em samba e soneto. São Paulo: Icone, 2003.

VEJA MAIS:
POETAS DE SÃO PAULO
PRÊMIO NASCENTE DE POESIA
CONSORCIO LITERÁRIO NASCENTE