terça-feira, abril 14, 2009

POETAS PERNAMBUCANOS - ENTREVISTA: GERUSA LEAL



GERUSA LEAL

ESCREVEDOR

Não escrevo o que não sinto
Amadora que sou
Sinto o que não escrevo
Jeito de amar a dor
Escrevo o que não sinto
Salvo a vida
Não sinto o que não escrevo
Nem percebo que vivi

ARRIMO

Caminho que dá na venda
Senda que faz estrada
Mesmo partindo do nada
Fruto da intuição
Ergue-se, pedra por pedra
Muro que dá arrimo
Seja com rima ou sem ela
Seja prosa ou barco a vela
Poesia ou falação
Pois enquanto houver pena
E sentimento no peito
Precisa haver algum jeito
De alguém botar no papel
O que outro alguém lá recolhe
E com seus muros e barcos
Refaz a sena do nada
E zomba da solidão.

CONTEMPLAÇÃO

De dentro da imensidão poente
À beira do precipício de mim
Contemplo carneiros de algodão
Na face impassível de Deus.

ETERNO

Mais que sorriso silente
Mais que ruidosa mudez
Mais que paleta de tintas
Ressecada, quebradiça
Que o pincel endurecido
No ateliê deserto
Mais que partir outra vez
Dói a terrível certeza
Do retorno sempre certo.

SOBRIEDADE

Sobriedade
Sóbria idade
Sobre a idade
Sobra idade
Sobriedade

PROVISÓRIA DANAÇÃO

Que tudo que eu diga
Soe a desalento, desencanto
Que à meia-noite sombria
Me visite
O fantasma espectral
Que hoje, amanhã
Sábado ou domingo
Os bondes saiam dos trilhos
E a morte na cruz não me salve
Que agora, neste momento,
Não me livre o senhor de todo o mal
Os bares estejam vazios de homens plenos
E as mãos dos namorados não se toquem
Porque hoje eu não sei
Não quero
Não sou.

MULHERES DE PRETO

Respirando a loucura
Bebendo a morte
Num só enorme dia
Feito de séculos
Milênios
Eternamente o combate no coração
Suportando o insuportável ao relento
Contra o muro
Lamento mudo
Rogo sem esperança
Sem urgências
Sem sentido
Inexplicavelmente
Durando no tempo
As mulheres de preto.

SABER SECRETO

De serpentes o coito perturbei
Matando a fêmea numa transformado
Fui mulher, fui prostituta
Os segredos femininos desvendei
Outras vez tendo o coito perturbado
Dum casal de ofídios outro acasalado
Desta feita em homem fui mudado
Do sagrado segredo macho-femea me apossei
Ao invés de serpentes eram deuses
Que então desta vez me convocaram
Como arbitro em disputa equivocada
Sobre quem mais prazeres desfrutava
Sabendo-me por certo em mortal perigo
Quer a um quer a outro desagradasse
Mesmo assim o que vi manifestei
Tive os olhos furados, por vingança
Da fêmea que se sentiu na disputa derrotada
Mas o segredo andrógino era meu
E o macho, com certeza por piedade
Mas também, não duvidem, desafio
Compensou-me com o dom da profecia
Cego e profeta então prossigo
Mas perdão não peço pela insolência
De saber que prazer não se mede nem se pesa
Macho-femea-serpente me tornei.

NÃO-FALO

Falo de mãos e de dedos
Falo de figos
E de seus segredos
Falo de lábios e línguas
Falo de peixes e serpentes
E maçãs
Falo de pele e de arrepio
Falo de velas, espadas e
Bastões
Falo de cheiros e de sabores
Falo de flores
Falo de romãs
Falo de cálices, de sinos
E de torres
Falo de calores e de convulsões
Falo e a noite se vai
E eu não durmo
Não-falo

SOU?

Caminhando vou –
Fumaça, vôo, nuvem
Chuvisco azul
Nuvem de chuva
Sabe-se La porquê
Dia de lua.



GERUSA LEAL – a poeta e escritora pernambucana Gerusa Leal, é autora de contos e poemas publicados nas coletâneas Contos de Oficina, organizadas pelo escritor Raimundo Carrero e também as organizadas pela Fundação de Cultura Cidade do Recife. Conquistou premiação nos concursos Luís Jardim, Prefeitura de Cordeiro – RJ, Maximiano Campos, Fliporto e mais recentemente o prêmio Edmir Domingues de Poesia 2007 da Academia Pernambucana de Letras, com o livro de poemas “Versilêncios”, livro ainda com lançamento previsto para final de março/2009. É integrante da Rede de Escritoras Brasileiras – REBRA. Ela edita o blog Flor de Gelo.
Ela gentilmente concedeu uma entrevista exclusiva pra gente, confira.



LAM - Primeiro, Gerusa, vamos pra pergunta de praxe: quando e como se deu seu encontro com a Literatura?

Luiz Alberto, eu sou filha de escritor autodidata que, infelizmente, por excesso de auto-crítica, publicou apenas um romance, que depois renegou e apesar da primeira edição haver se esgotado, nunca quis fazer uma segunda, e de contos premiados e alguns belos poemas que estão espalhados nas mãos de mãe e algumas irmãs.
Mas, antes que escritor, meu pai era um grande leitor. Eu sempre o vi com um livro nas mãos, e nossa casa sempre teve livros por estantes espremidas ao longo dos corredores. Eu tinha tal sede de aprender a ler que naquele tempo em que a gente só ia para a escola aos sete anos de idade, perturbei tanto minha mãe, primeiro para que ela me ensinasse os números na fita métrica que ela usava para costurar para a gente e para fora, como se dizia, e em seguida, ou ao mesmo tempo, vai saber, para que me ensinasse a ler, que já cheguei na escola alfabetizada. A primeira palavra aprendida a escrever, e a ler, foi GATO, que ela desenhava tracejada, eu ia ligando os tracinhos e lembro até hoje da alegria ao reconhecer a palavra.
Daí em diante, foi um tal de nunca mais parar de ler, um vício tão grande que quando não tinha nada para ler lia até dicionário.

LAM - Quais influências da infância e da adolescência foram marcantes para a formação da escritora?

Meu pai tinha uma excelente biblioteca, devorei todos os livros, e mais alguns que, no início da adolescência, ele me comprava para que eu lesse durante uma convalescença prolongada de uma artrite reumatóide, que me deixou muito tempo de cama. São dessa época as primeiras leituras de Moby Dick, Os três mosqueteiros, Dom Quixote, Ivanhoé, e por aí vai. Quanto mais volumoso o livro, mais eu me sentia presenteada, e sempre me entristecia quando acabava.
Havia, é claro, também, toda a coleção de Monteiro Lobato, que eu lia, e relia e relia.

LAM - Você tem formação em Psicologia. De que forma essa formação contribuiu para a formação da poeta e de como você concilia essas duas vertentes?

Luiz Alberto, acho que a formação em Psicologia veio do mesmo interesse que veio a paixão pela literatura e, hoje, pela criação literária, pela alma humana. Tudo que diz respeito à alma humana me interessa, e nada do que é humano me é estranho. Acho que a conciliação vem na medida em que a formação em Psicologia, hoje, é algo metabolizado, que faz parte do meu repertório de vida, e me aguça a capacidade de observação, acima de tudo. Mas fujo feito o diabo da cruz da psicologização em meus poemas, em minha prosa. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Portanto, a formação em Psicologia, se o escritor não tiver cuidado, pode ser uma faca de dois gumes, pendendo perigosamente para a auto-ajuda que, no meu entender, está distante do gênero de poesia e de prosa de ficção que me interessa criar e ler.

LAM - Você tem participado das Oficinas de Criação do mestre escritor Raimundo Carrero. Qual a contribuição dessas oficinas na maturidade da escritora?

Eu diria, Luiz Alberto, que sem as Oficinas de Criação Literária do amigo Raimundo Carrero, muito provavelmente não existiria, hoje, uma escritora, uma poetisa. Instigada por parentes e amigos que diziam que eu escrevia bem e que, por isso, devia escrever, e sabendo que escrever certo está longe de escrever boa poesia e boa ficção, ao descobrir a existência das oficinas, há pouco mais de seis anos, me inscrevi numa delas, com o propósito claro para mim, na ocasião, de provar aos que me instigavam e a mim mesma que eu não era escritora, e continuar com minhas aulas de dança ou ir atrás de aulas de canto, qualquer coisa apenas para o cultivo de uma atividade prazerosa. Acontece que já no primeiro encontro, Carrero me colocou no espírito a dúvida, e eu me encantei tanto em poder conviver, sem sequer a obrigação de escrever, com escritores e partilhar de perto de momentos do seu processo criativo, que para mim bastava. Mas com toda a habilidade que lhe é peculiar, respeitando o momento de cada um, Carrero acabou me levando a escrever, a partilhar o escrito, e fui me apaixonando pelo processo, e o resultado é que escrevo há pouco mais de seis anos, com poemas e contos premiados, alguns publicados em coletâneas, e agora a publicação de Versilêncios, premiado em 2007 pela Academia Pernambucana de Letras. Então, a escritora, sem as oficinas de Carrero, não existiria e, se por acaso existisse, com certeza não teria feito, em tão pouco tempo, o percurso que fêz, aparentemente pequeno para quem olha de fora, mas imenso para quem só está empenhada na criação literária há seis anos. As oficinas aceleram absurdamente o amadurecimento artístico de quem realmente se interessa, frequenta, estuda, exercita, lê. E as de Carrero são algo à parte, por conta da imensa generosidade do renomado escritor, que não nos sonega absolutamente nada da partilha de suas descobertas e invenções no campo da criação literária.

LAM - Você integra a REBRA, participa de várias antologias e tem marcado presença em vários cenários literários. De que forma isso tem contribuído tanto para o processo de realização e para a difusão de seu trabalho literário?

Olhe, há um autor, Gabriel Perissé, no seu excelente A Arte da Palavra, que diz que todo escritor deve criar, deve ter um "leitorado". Um grupo de mentes pensantes, a quem ele apresente, em primeira mão, sua produção, com a mente aberta a comentários, críticas, observações, e até elogios.
Há um outro autor, que agora não vou me lembrar o nome, que diz que hoje em dia não basta você escrever, não basta que sua produção literária tenha qualidade, você precisa se envolver numa rede por onde sua produção circule, para que possa ser lido. Acho que isso é tanto mais verdadeiro quanto mais iniciante, desconhecido e atuante fora do eixo das grandes editoras milita o escritor. Exemplo excelente disso é exatamente essa entrevista que você agora me faz e que, tão generosamente, se dispõe a publicar em sua página cultural. É esse tipo de rede que divulga o trabalho de um escritor de uma forma menos massiva mas talvez de mais qualidade.
A REBRA é um outro espaço excelente para divulgação, agora mesmo, por contatos feitos através da REBRA, minha produção poética está sendo estudada por aluna de módulo de literatura feminina brasileira na universidade de Miami, na Flórida. E quanto ao processo de realização, os blogs pessoais, as listas de criação, como o grupo comasuapermissão, de poetas daqui de Recife, do Rio de Janeiro e de São Paulo, de que participo, e onde foi gestado todo o Versilêncios, ou revistas eletrônicas, como a Histórias Possíveis, da qual sou colaboradora permanente, o que me cobra pelo menos um texto em prosa por mês, contribui de uma forma fabulosa para que a gente não se deixe cair na inércia, esteja sempre criando, inventando, se renovando literariamente.

LAM - Agora vamos falar de Versilêncios, um livro recheado de temas pessoais e afetivos com seu lirismo maduro. Ou como você mesma diz: "poemas blocados em sub-unidades mostradas como um percurso narrativo e existencial de um eu lírico". Fala, então, do processo de composição dos poemas para chegar na unidade do livro, até a premiação alcançada.

Meu contato com a criação poética é ainda mais recente que com a ficcional. Há uns quatro anos, numa bienal internacional do livro aqui em Recife, conheci a poetisa Márcia Maia que, a partir de contatos em outras atividades na bienal, sugeriu que eu participasse também da oficina de Fred Barbosa, por três ou quatro manhãs. Eu disse que não ia, que não era poeta, que não era minha praia. Desde então Márcia começou a insistir que eu era poeta, e o que custava eu fazer a oficina de Fred, do que eu tinha medo? Pensei e respondi que tinha medo de gostar, de enveredar pela poesia e deixar de mão minha outra paixão, a prosa de ficção. Mas fui fazer. Um exercício poético feito durante essa curta oficina, inscrevi no concurso literário da Fliporto, em 2006, e resultou num terceiro lugar. Nesse meio tempo, Márcia me convidou para participar dessa lista de criação, na internet, e fiquei por lá compondo meus poemas em resposta a provocações de imagens, de poemas dos colegas de lista, ou depositando nesse vaso alquímico poemas que vinham espontaneamente. Mas apenas arquivando o resultado dessa produção numa pasta que apelidei de "brincadeiras literárias". Ao cabo de algum tempo, Márcia me provoca outra vez, a inscrever um livro de poemas no concurso da Fundação Cultural de João Pessoa. Aleguei que não tinha livro, ela insistiu que eu tinha, que já tinha postado muita coisa na lista, que desse uma olhada. Imprimi os poemas, coloquei em cima da cama e (questiono sempre isso nos concursos) precisava de um número mínimo de páginas. Que representava praticamente toda minha produção até aquele momento. Desanimei. Como dar unidade a algo que não havia sido criado pensando em unidade? Então comecei a agrupar os poemas em blocos por afinidades quase que só intuídas, pois eles poderiam ser agrupados de diversas outras formas. E nesse processo, percebi que esses grupos, ou blocos, podiam ser montados segundo um percurso existencial, passando do questionamento do próprio ato de criação poética, pela infância, por diversos momentos do existir, até chegar à maturidade e envelhecimento do eu lírico. Decidi que ia ser essa a estrutura do livro, inscrevi em João Pessoa, e no mesmo dia se encerrava o prazo para a inscrição no concurso da Academia Pernambucana de Letras. Como concurso é concurso, em João Pessoa não obtive nem menção honrosa, e na Academia Pernambucana, fui o prêmio Edmir Domingues de Poesia 2007. E essa é a história da gestação e premiação desse livro.

LAM - Versilêncios tem recebido muitos elogios traduzindo a maturidade da poeta reconhecida na premiação. A partir disso, como se mostra e se realiza a poeta nesse mundo de barulhos e indiferenças?

Bom, Luiz Alberto, como diz Carrero, o amadurecimento de um escritor, de um poeta, é um processo que leva tempo. Talvez venha contribuindo para a percepção de maturidade em minha poesia, alguns aspectos. Primeiro, sou uma mulher madura, de 55 anos de idade. Depois, sou uma leitora madura, e que sempre foi apaixonada também pela leitura de poesia, sempre li bons poetas, sendo meus preferidos Fernando Pessoa, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Mário Quintana e outros. E por último, mas não menos importante, apesar de meu embasamento teórico em termos de criação poética ser mínimo, há toda essa base de vida e de leitura metabolizada e, mais uma vez, a oficina de Carrero acelerou meu amadurecimento como criadora também no gênero poesia, pois como não faço uma poesia de formas fixas, rimada, metrificada, uso no burilamento dos meus versos, os mesmos recursos e ferramentas que venho aprendendo e metabolizando ao longo dos anos de oficina com Carrero. Além disso, a convivência, pela internet, com poetas com os quais trocamos, num verdadeiro laboratório onde se dá e se recebe toques preciosos durante o processo de criação de um poema, é outro fator de aceleração do amadurecimento criativo.
A poeta convive de forma dialética com esse mundo de barulhos e indiferenças, pois só a convivência dialética fertiliza. Mas se mostra com certa dificuldade, devido a uma personalidade predominantemente introversiva, e um gosto nada disfarçado pelo silêncio e a solidão, não a solidão afetiva, mas a solidão onde a gente pode se exercer por inteiro, e de onde nascem nossos frutos literários.

LAM - Você transita por outras formas literárias. Fala a respeito dessa versatilidade.

Eu de fato comecei meu percurso criativo em literatura pelo conto, que é a forma que mais me fascina. De repente há um parentesco próximo entre o conto e o poema, dada a necessidade de se expressar o máximo com o mínimo de recursos, buscando levar ao leitor o efeito desejado. Há um livro de contos sendo gestado, alguns também premiados, mas no qual ainda estou trabalhando. E ando ensaiando também, desprentensiosamente, uma novela, ainda muito em embrião para que se saiba se vai vingar. Eu gosto de me concentrar, de não abrir muito o leque, mas uma certa diversidade é muito nutritiva para o ato criador. Alguém já disse, também não vou lembrar agora quem, que o bom poema é aquele que mais se aproxima da prosa. E que a boa prosa é aquela que mais se aproxima da poesia. Portanto, nem tão estranha assim essa busca pela diversificação. Um gênero alimenta o outro.

LAM - Você tem pronto um argumento para uma narrativa infanto-juvenil. Fala a respeito dessa empreitada.

Esse argumento está pronto há alguns anos, mas anda em compasso de espera. Há muita coisa acontecendo, muitas demandas, e de fato não tenho me dedicado a esse projeto. A idéia passa por uma releitura de um clássico de Kafka, já há um esboço de enredo, alguns personagens delineados, e alguns capítulos rascunhados. Mas também um projeto muito embrionário, não tenho previsão de conclusão para ele.

LAM - Quais os projetos e perspectivas da Gerusa Leal?

Projeto prioritário, no momento, meu livro de contos. Mas, até para alimentar a alma, paralelamente, a gente vai trabalhando em outras coisas.
Perspectivas? Não saberia te dizer, ainda engatinho pela seara da criação literária, tenho aproveitado os espaços que se me oferecem, e tenho tido retornos gratificantes. Acho que a única perspectiva de que posso falar com segurança é que a criação literária continua me apaixonando, e que continuarei buscando o aprimoramento na qualidade do que produzo, principalmente pelo prazer estético, que é diferente mas, para mim, tem sido tão nutritivo quanto uma boa leitura.



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