quarta-feira, abril 09, 2008
POETAS DA BAHIA
ANTONIO RISÉRIO
1
Paises intraduzíveis
Em seus caprichos
De treva e luz.
Pai de feitiços
Em praias de coral.
Mãe de mistérios
De inúmeras cores negras.
Cama de deusas,
Mina de deuses,
Sob estrelas.
REVANCHE
Considere um lance de dados
Em circunstâncias efêmeras.
Mas um lance limpo no ar
Um vôo de peças no puro nada
E não um lance enfermo
De pedra viciada.
Agora, voltemos o filme.
Antes que o dado dance,
Estou de posse de muitos dados.
Conheço a geografia do movimento
O mapa exato da paisagem muscular
Os contornos precisos
De cada poro da mão do jogador.
Conheço as mínimas medidas
De cada lado do dado alado.
Conheço as trilhas possíveis
Das correntes de ar.
A microtopografia do abismo sem fundo.
A força e o ângulo
Do pulso e do impulso.
Quando o dado tiver dado
Apenas alguns volteios
Em meio aos floreios do ar,
Darei o sinal.
E meu computador me dirá
De sua trajetória inteira –
Da partida ao pouso
E ao repouso final.
A menos que ocorra
Algum carnaval.
3
oh vós homens cidadãos
oh vós povos curvados
e abandonados
a liberdade
consiste
no estado feliz
no estado livre
do abatimento
a liberdade é a doçura da vida
cada vez mais exaltada.
ORIKI P/OIÁ-IANSÃ
Leopardo no ar alto
Fuzilando a treva.
Ira e brisa pelos campos.
Corisco na cara da escuridão.
Senhora que incendeia
A casa da mentira.
Senhora sem medo algum.
Senhora que relampeia
Entre os tambores do orum.
STRASSENKINDER
Crianças que miram espelhos
E giram as caras cansadas
Onde narciso não é conselho
Nem comboio acha a estrada.
Criança de poucos pentelhos
De rubras roupas rasgadas
Entre guinchos gosmas e relhos
Orgasmos de putos no ralo.
Crianças de coxas vermelhas
No beco das bocas usadas
Moeda e moenda dos grelos
Nas fodas das doidas danadas.
Crianças que masturbam velhos
E chupam xotas grisalhas
Lambendo o sangue dos medos
Nos dedos grudando de gala.
Sob a navalha da ira
O sol se descola sagrado
Que a vida por mais que me fira
Não me verá conformado.
OCA
Cava o passado.
Cava e escava,
Escravo.
Cava o chão
Do passado.
Erra na terra deserta.
Vela a vila desaparecida.
Deita na aldeia abandonada.
Chora na cidade fantasma.
Mas cava, escravo.
Cava e escava o passado.
Cava a esmo no ermo.
Cava o mesmo no mesmo.
(O alucinado sempre
repetindo o filme;
o criminoso sempre
no local do crime).
Lavra, sulca, escarva.
E assim até chegar
Ao carvão mais vivo
Do ébrio coração escândalo
Que brilho ainda resta:
Uma chama na montanha,
Outro fogo na floresta.
VERS
Amor que parte o claro riso
Em querer desmedido
E recusa insana
Amor que me toma
Como um carrossel de sóis
E um girassol de lâmpadas
Vê se me alumia
Me esclarece
Me doma
) sim não simnão nim são sins (
eis que não me sei
ser menos que seis
toda e cada vez
) sim não simnão nim são sins (
amor que vence os tigres
vê se vence a mim
e me arrasa e me ilumina
para que eu saiba
saber o sim
KOYOTAYA
Errar por terras desconhecidas
É coisa quase certa, meu amor.
Mas o que me floresce e incita
São matizes, aromas e timbres
De paises desconhecíveis.
E é por isso que viajo até doer
Quando você me exila em você.
POEMA DA CATEQUESE
Estranho ao santo
Astro casto
Branco e manco
Engastando-se lasso
Num canto sem vida
(o fogo afogado
a libido inibida),
o caraiba tupi
comia funaça
coçava cabeça
tocava cabaça
e em graves cantares
e grandes beberes
gozava da graça
de muitas mulheres.
ANTONIO RISÉRIO – o poeta, antropólogo, tradutor e ensaísta soteropolitano, Antonio Risério, é autor de vários livros, dentre eles, Fetiche (1996). Nos anos 60 participou da contracultura. Em seguida, nos anos 70 editou revistas de poesia experimental e escreveu para a imprensa brasileira. Teve suas parcerias poético-musicais gravadas por diversos nomes da música popular brasileira, como Caetano Veloso. Foi um dos criadores e diretores da Fundação Gregório de Mattos e concebeu e dirigiu o Centro da Referência Negromestiça (Cerne).
FONTE:
RISÉRIO, Antonio; BARBOSA, Frederico. Brasibraseiro. São Paulo: Landy, 2004.
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